Medo
hétero de amar (A Era dos linchamentos morais)
Abolinácio
queria comer Gabriela, mas não tinha coragem nem para dizer-lhe bom dia, quanto
mais paquerar, muito menos aplicar uma cantada legal, que não seja patética,
arrogante ou ofensiva.
A
culpa de Abolinácio esconder os olhares gulosos e os sorrisos tímidos era o
malfadado politicamente correto, o qual ele não entendia bem. Será que ele não
podia ser homem e gostar de mulher, e declarar-se com suavidade e verdade,
prometendo respeitosamente dividir a vida e a cama com ela sem que o acusassem
de machismo e o prendessem, levando-o algemado pelas ruas, apedrejado pelos
transeuntes enojados porque ele ousou desejar uma fêmea?
Gabriela
era moça séria e bonita, gentil e leal, tratava às pessoas muito bem e sorria
com facilidade. Era digna de ser amada e desejada, mas ele temia que por trás
daquela simpatia houvesse uma garota impiedosa, disposta a acabar com a vida
dele caso soubesse de suas intenções românticas, e por que não dizer, sexuais.
Eram
tempos confusos, esses, em que os homens não deveriam expressar interesse nem
tentar a sorte, e no máximo ouvir um não caridoso, sem ofensa ou diminuição do
seu desejo, como funcionava antes.
Por
esse motivo Abolinácio vagava pela firma como um sonâmbulo, perto dos colegas e
com ela presente não dizia nada, nem bebia ou contava piadas que pudessem ter
duplo sentido e estragasse o seu amor platônico que jamais sairia do pensamento
para a realidade simplesmente porque os regulamentos sociais mudaram, e
radicalizados passaram a assombrar a qualquer homem decente e saudável que desejasse
comer uma mulher.
Restava-lhe
o sonho mais cruel, que consistia no dia em que Gabriela tomaria a iniciativa e
o convidaria para jantar, ir ao cinema e depois esticar para o término da noite
em um lugar discreto e agradável, tudo devidamente registrado em vídeo pelo
celular, para evitar surpresas pós encontro. Os estatísticos amorosos de
plantão nas redes sociais afirmavam que a porcentagem de uma coisa dessas
acontecer era baixa, porque as mulheres temiam errar o bote e convidar um
cidadão que não gostasse da fruta. Seria constrangedor para todos.
E
o impasse estava firmado e reconhecido, devidamente difundido e vorazmente
defendido. Heterossexuais estavam com problemas para se dar bem. Livros sobre
como reconhecer os sinais positivos e evitar as gafes e os vexames pré-sexuais
estavam vendendo bem. Cursos online sobre como se aproximar na certeza sem ser
taxado de assediador, idem.
Abolinácio
não era nada disso. Em princípio só desejava comer Gabriela, e depois decidir
em conjunto possibilidades de prosseguirem juntos respeitosamente, de forma
eventual ou fixa, seguindo a cartilha do bem viver, anti-assédio e divisor
justo de tarefas e lucros.
Um
dia Gabriela caminhou inocentemente em sua direção com aquele sorriso perfeito
e com uma garrafa térmica na mão, e usando aquela voz encantadora e maravilhosa
de atendente do antigo serviço de sexo por telefone, perguntou para Abolinácio
na lata:
-
Abolinácio, aceita um café quentinho? Acabei de passar.
Abolinácio
ficou verde, espumou pela boca e, sem conseguir pronunciar uma palavra,
infartou, ali, na frente dela.
Foi
inaugurada, então, a possibilidade de processo por “contra-assédio sexual
desprovido de intenção”. Novos militantes, novas leis, novos advogados, novas
atitudes políticas... Fim dos tempos.
Marcelo
Gomes Melo
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Seu feedback é uma honra!