Hoje
o meu corpo esteve mais próximo do corpo dela. Quase nela. Os nossos perfumes
se comunicaram, o calor de nossa pele entrou em contato efervescendo um
caldeirão de sensações inexplicáveis, imprescindíveis... A respiração parecia
estar no mesmo ritmo e nossos olhares suplicavam por mais!
Sim,
é doloroso amar assim, com tão pouco; mas é glorioso amar assim por tão pouco!
Quando os pensamentos são tomados e não há volta, o corpo sente e demonstra o
que necessita, as sensações apuradas insistem em lhe obrigar a querer loucuras,
e a fazer loucuras, caso o senso de responsabilidade não barre a vontade
adolescente que nos faz deitar e acordar juntos, mesmo que não estejamos no
mesmo lugar fisicamente.
O
amor espiritual enleva e tranquiliza, mas o amor carnal é exigente e nos tira
da linha, massacra os corações que transbordam de amor, promete prazer
inigualável e entrega prazer inigualável desde o início, gotas abençoadas de
carícias furtivas, respiração ofegante de amores pendentes, sonhos constantes
de cada realização que permanecerá sonho, depois, constantes de cada realização
que permanecerá sonho, depois, e realidade, depois sonho, depois realidade.
Você
me faz querer mais, petite nuage! Suas tranças no meu peito, suas costas
macias, mapa das minhas ávidas mãos. Querer sempre jamais será suficiente!
Não
permita que um dia de feriado prolongado acabe com os seus planos de continuar
o trabalho, manter o foco nas atividades pelas quais se responsabiliza apenas
para ficar com o amor da sua vida.
Quem
é que faria algo assim, insano? As obrigações sempre virão à frente, afinal o
que é abraçar em final de tarde sob o morno entardecer fitando a praia com
pensamentos distantes de felicidade imediata, quando há tarefas tão mais
interessantes como cálculos, argumentações e opiniões políticas a oferecer,
participando efetivamente das mudanças as quais acredita serem reais para
simplesmente acolher aquela sensação de pertencimento que se tem uma vez na vida!
Volte-se
para a frieza dos números, amigo, para a segurança das cartas de cobrança, o
texto elaborado para a defesa do cliente... Não seja comum ao ponto de abençoar
a paixão de sua vida com todo o desejo necessário, tatuando o corpo dela contra
o seu, sussurrando poesia erótica em seu ouvido enquanto lhe acaricia os
cabelos!
Sim,
cidadão de bem! Cuide do que é realidade, por mais insossa que se pareça. Não
alimente o coração com o filé dos desejos, e a consciência com o vinho forte do
prazer. Recolha-se à sua insignificância, sente-se sob a luz gelada do
necrotério dos sonhos e recomponha-se a ponto de perder as emoções.
Todos
que assim procedem garantem um viver de extrema convicção material, aderindo ao
patamar glorioso dos cérebros inócuos, mas cobertos por moedas de ouro e
riquezas as quais nem todo vivente da espécie jamais imaginaria ter!
É
assim que se transforma um ser humano privilegiado por Deus com a capacidade de
amar em uma aberração sintetizada pelo egoísmo e materialismo.
No
meio da reunião anual da empresa, com todo o departamento presente, um deles
observou com certa jocosidade:
-
Você está com um sorriso diferente no olhar, Silva, uma certa felicidade
incontida. Conte-nos a razão.
E
por trás da máscara de proteção contra mais um vírus pandêmico pôde- se
entrever um sorriso largo de felicidade.
-
É, Silva, abra o jogo, meu camarada!
E
ele, erguendo-se, pigarreando e empertigando-se, anunciou:
-
É que estamos aguardando gêmeos. Sexta-feira iremos ao médico para saber o sexo
dos bebês.
Houve
uma explosão de gritos, palmas e cumprimentos efusivos ao Silva, que balançou a
cabeça, emocionado. Eis que uma daquelas pessoas que têm como arte fazer
perguntas óbvias, das quais todos sorriem, mas muitos gostariam de fazer sem ter
coragem.
-
Parabéns, Silva. Então a sua esposa está grávida?
-
Não – ele respondeu de bate-pronto – A vizinha.
Houve
um silêncio total entrecortado por risos, olhares orgulhosos e surpresos dos
homens, horrorizados e surpresos das mulheres!
E
Silva se viu na obrigação de explicar:
-
Foi o melhor acordo que fechei em anos, pessoal! Eu verei as crianças, mas ela
cuidará; eu darei educação bélica e ela a educação empática; eu cuidarei da alimentação
raiz e ela dá alimentação saudável. Ela os encaminhará a psicólogos, e eu
aplicarei a psicologia do cipó no lombo... Perfeição!
Homens
olhavam com inveja e orgulho incontido pela atitude arrojada do colega. “Por
que eu não posso ser como ele?”, pensavam ostensivamente.
As
mulheres balançavam a cabeça, desaprovando. Umas apelavam para as regras
divinas, as feministas propunham contar para a mulher dele imediatamente. As
feministas radicais queriam demiti-lo e torturá-lo em praça pública, castrando-o
e usando a suposta vizinha como exemplo de uma mulher frágil, seduzida e
enganada...
O
burburinho se intensificou, uns querendo de Silva a receita sedutora para
tentar o mesmo, outros lamentando não terem vizinhas bonitas... Algumas
querendo fuzilá-lo com o olhar, outras fitando-o com pena, e umas com o dedo em
riste, pretendendo agredi-lo mortalmente.
Os
chefes apareceram imediatamente, os seguranças e os departamentos vizinhos. Os
fofoqueiros de plantão cogitaram ligar para a imprensa dado o caso
constrangedor, mas outros argumentaram sobre um possível processo por
intromissão na vida alheia, o controverso assédio moral a um suposto assediador
sexual... Ninguém lembrava que traição não era crime no código penal.
Até
que Silva pediu tranquilamente a palavra e informou:
-
Pessoal, reconheço que a piada não foi de bom gosto, mas, se estou o dia
inteiro aqui, trabalhando, inclusive aos sábados e domingos, como arranjaria
tempo até para conhecer a vizinha? Fake News! E foi até à máquina de café
servir-se de um capuccino relaxante.
Algumas
fêmeas mais radicais ainda permaneceram em dúvida. Jamais o olhariam como
antes. Ah, o Silva!