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Surtos fabricados para vidas descartáveis



       Ele estava em uma dessas enormes lojas de eletrodomésticos, roupas, tecnologia, e tudo o que se possa imaginar, parado na seção de televisões de última geração, gigantescas e eficientes, que só faltam falar. Uma delas, de 75 polegadas estava ligada a um aparelho home theater com som estrondoso, apresentando uma luta de MMA, dessas sangrentas e ultraviolentas.
    Hipnotizado observa os golpes massacrantes, chutes na cabeça, joelhadas que esmigalham narizes, olhos cobertos de sangue e supercílios inchados. Pernas arroxeadas não intimidavam os gladiadores corajosos e acostumados a lutar pela sobrevivência. A bolsa, que é a quantia recebida por cada um, iria sustentar ambas as famílias por um bom tempo, enquanto tentariam se recuperar no hospital, cada vez mais emendados como Frankensteins funcionários de um esporte doloroso, mas atraente aos sádicos que deliram vendo sangue e ossos partidos em nome da honra.
       A cada golpe ele associava à sua vida. Soco cruzado no queixo: ele destruíra o despertador de manhã, forçando-se a levantar para o trabalho, ambiente maldito que odiava a cada dia, escravizado pela necessidade de sobreviver.
          Joelhada no abdome: recebera da esposa a notícia de que estava grávida, em breve outra boca para alimentar, mais horas extras para implorar ao chefe, mais falta de sono e preocupação com o período de cuidados da mulher até o nascimento.
         Cotovelada na testa, chute na panturrilha: nervoso ao chegar no trabalho recebera antes do bom dia a notícia de que o patrão queria falar com ele urgentemente. Mais recriminações, broncas e ameaças de demissão, o que era corriqueiro, pensou, descobrindo que o café era de ontem e estava frio.



         Chuva de socos e antebraço na cara: notícia de que os negócios da semana deram errado e perdera clientes. Trincava os dentes e arregalava os olhos, os músculos dos braços retesados, os cabelos da nuca eriçados.
          Chave de braço, esticando a ponto de quebrar: o chefe chegara e bruscamente lhe dera bilhete azul aos gritos, desrespeitando um funcionário de muito tempo de casa que estava em má fase. Todos ficaram sabendo imediatamente, então retirara-se totalmente humilhado, com o ódio do mundo e de todos os egoístas que não se importavam com nada nem com ninguém!
          A desistência de um dos lutadores com o braço partido foi uma chave que ligou nele aquela vontade impossível de superar de devolver ao mundo as maldades das quais estava sendo vítima. A loucura começou como um furacão, assustando a todos os presentes. Sacando da mochila um taco de baseball partiu furiosamente destruindo as tevês com golpes violentos, varrendo prateleiras e quebrando vitrines.
          A raiva o tirou da sensatez, o único caminho era vingar-se quebrando a tudo e a todos. Os vigilantes que tentaram se aproximar foram atingidos sem piedade, cortes e pancadas desferidas aleatoriamente. A rotina de um homem pode destruí-lo a qualquer momento, ele é uma vítima de si mesmo e do entorno que têm significância em sua vida. Tudo pode piorar a ponto de não ter retorno.
          Os policiais, ao chegar usaram armas de choque, derrubando-o através dos choques, fazendo-o tremer no solo como se sofresse uma crise de epilepsia.
          Preso, algemado, apareceria no jornal da noite como mais um louco e ninguém jamais consideraria os motivos que o levaram ao surto. A imprensa, feliz, arrancaria o que pudesse do fato, torcendo, distorcendo e aumentando para manter o público hipnotizado em frente à tevê, horrorizados e dispostos a comprar tudo o que os patrocinadores seduzem nos intervalos, sem tempo para raciocinar. As coisas estão entrelaçadas, as vítimas, os espectadores devidamente fisgados, nem imaginam que em breve poderão se transformar em notícia para alimentar a mídia sedenta de poder e dinheiro.



Marcelo Gomes Melo


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