Há
trinta anos só havia um Shopping Center em São Paulo, na região norte, que é
ainda hoje em dia excepcionalmente frequentado por pessoas de toda a cidade,
embora nos dias atuais sejam encontrados diversos Shoppings em cada bairro,
espalhados por todas as regiões. Temos então uma estimativa do início da lenda
do Mortão da Realenda e da Doidinha do Shopping Center; meados dos anos
oitenta, quando os jovens da geração new wave, com suas roupas coloridas e
calças balão agitavam misturados aos yuppies com ombreiras no blazer e peruas
com laquê nos cabelos armados.
De
acordo com muitos dos sobreviventes, hoje quarentões, gente que evita
frequentar os novos Shoppings raramente admitem temer de forma desesperada as
garagens e os assombrosos corredores, os banquinhos e as praças de alimentação,
os banheiros e as lojas mais populares, que são os locais em que a ação
acontece, os jovens sem sorte da época perderam a vida aterrorizados e destroçados
das maneiras mais dolorosas e torturantes possíveis, culpados e punidos por
coisas que mal podiam imaginar.
O
Mortão da Realenda era um rapaz de dois metros e vinte de altura e quarenta
quilos de peso; mãos gigantescas com dedos finos de trinta centímetros cada.
Pés enormes com seis dedos em cada e unhas tão grandes que não dava para usar
sapatos, mesmo porque não havia sapatos que lhe servissem, então usava
sandálias do maior tamanho encontrado e ainda assim ficava com os calcanhares
para fora.
Com
dez anos de idade o Mortão já tinha dois metros de altura, e era vítima de
bullying na escola, na igreja, usado como exemplo pelo padre em todos os
sermões nos quais se referisse a aberrações e tipos desajeitados. Nas festas
era colocado no centro da sala segurando o globo enquanto a garotada dançava e
se divertia à sua volta. E em casa. Em sua própria casa era gozado sem piedade.
O pai o chamava de modelo. Modelo do Cristo Redentor, quando a mãe o colocava
no meio do quintal, de braços abertos, sob o sol, e pendurava as roupas
molhadas para secar.
Os
pais usavam sua mão enorme como bandeja, e o colocavam a ajoelhado ao lado
deles no sofá, com a mão espalmada onde eles apoiavam os copos e a garrafa de
refrigerante, o balde de pipoca e potes de salgadinhos enquanto assistiam às
novelas.
Foi
então que, aos dezoito anos, o Mortão, que amava skate e vivia no Shopping, em
frente a uma loja de esportes radicais chamada Realenda, namorando aqueles
coloridos skates, pequenos demais para os seus pés enormes – até as pranchas de
surfe eram menores do que os seus pés – que o desastre aconteceu. O casal de
jovens atendentes da loja sempre o trolavam, fazendo piadas sobre o seu
tamanho, sua magreza, seus olhos caídos, seus cabelos colados à cabeça como
macarrão mal cozido, sua enorme boca povoada por dentes de tubarão, as orelhas
de abano... Disso ele nem se importava mais, porque até em casa os pais o
zoavam sem piedade, e gargalhavam escandalosamente, sem parar. Aquelas
gargalhadas ecoavam em sua mente até premiá-lo com uma enxaqueca permanente.
O
que fez com que o Mortão explodisse foi uma simples frase dita por um dos
jovens e repetida pelo outro. Um vulcão de emoções e sentimentos ruins vieram à
tona quando ouviu deles que jamais poderia ser um skatista com aqueles pezões
cheios de dedos. Jamais seria um esportista radical!
A
reação inesperada congelou os jovens vendedores. O Mortão quebrou a vitrine com
uma cabeçada e urrando como um porco com afta passou a destruir a loja com suas
grandes mãos. Com um tapa atirou os atendentes longe, esparramados no chão; o
rapaz, ao tentar se levantar para fugir encontrou a unha do dedão do pé direito
do Mortão, como uma serra elétrica na sua garganta, cortando e jorrando sangue
por todo o lugar. A garota dava berros esganiçados e estridentes, numa mistura
de Tetê Espindola com Maria Sharapova, e isso o faz relembrar das gargalhadas
da mãe e o enfureceu ainda mais! Segurou-a pela cabeleira como se fosse uma
boneca e enfiou-lhe uma espátula para colocar tênis na garganta da moça,
arrasando-lhe a traqueia. Não satisfeito, ainda ouvindo o barulho do sangue
borbulhando na garganta dos desesperados, meteu três bolas de tênis goela
abaixo da vendedora. Então moeu grande quantidade de vidro entre suas
gigantescas mãos e lotou a boca de ambos, forçando-os a engolir. Nada tirava
aquela dor na sua cabeça; nada abafava os sons dos gritos e das gargalhadas,
misturados. O Mortão girou estabanado, a loja toda destruída. A polícia já
estava lá fora, uma dúzia empunhando metralhadoras o encaravam assustados. O
Mortão também tinha medo! Sem saber o que fazer, aquela aberração enorme,
coberto de sangue, moveu-se para pegar o seu objeto de desejo: um skate só para
ele. Foi seu último movimento. Tomado por um ato hostil, os policiais o
metralharam até a última bala.
Após
a tragédia a loja Realenda deixou de existir, e um ano depois, no local, uma
loja de roupas íntimas masculinas e femininas foi inaugurada. Consta que a
partir daí, nessa loja e em todas as filiais nos shoppings brasileiros, o
Mortão da Realenda costuma surgir como uma enorme sombra, por alguns instantes.
Logo após essa aparição, clientes da loja que o viram rapidamente aparecem
mortos em locais menos frequentados do shopping: estacionamentos, escadarias e
elevadores. As moças enforcadas pelo próprio sutiã; os rapazes pela própria
cueca, arrancada pela cabeça sem tirar a calça jeans.
Na
autópsia de todos que são encontrados assim, retira-se enorme quantidade de
vidro moído do estômago. Das moças, algumas bolas de tênis, também.
O
Mortão da Realenda retorna para tentar cessar o barulho permanente em sua
cabeça sem fazer qualquer distinção de raça, cor, idade, opção sexual...
Qualquer comprador da loja ou filial, em qualquer shopping brasileiro estará
automaticamente na sua lista mortal.
Está
lembrado se comprou lingerie, cuecas ou pijamas no shopping ultimamente? Feche
bem as portas e as janelas e durma bem.
Enquanto
isso, a Doidinha...
Marcelo Gomes Melo
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