A
campainha novamente. Já? Que bom, se fosse o vizinho com o carro de tanque
cheio eu iria fazer um empréstimo e diria a ela para pegarmos a matinê! Pedi
licença e abri a porta, acelerado. Não era o vizinho, era o meu amigão de longa
data, o Jabá. Fiquei meio atarantado, sem saber como dispensá-lo, mas ele foi
logo falando, parado à porta; não entrou sem cerimônia do jeito que sempre
fazia. Contou ter passado na banquinha do Godofredo, o velho do jogo do bicho,
e fez uma fé depois de um sonho na noite anterior e... Cortei o papo furado
dizendo que estava ao fone, mas o Jabá me pediu um minuto. Não, não iria
entrar, também estava com pressa, depois contaria o sonho. Suspirei,
incomodado, e ele percebeu.
Já
vou me mandar, calma! Lembra-se daquele dinheiro que você me emprestou outro
dia? Puxa, lá vem ele querendo pedir mais um empréstimo, e sou eu quem está
precisando, agora, pensei. Não tenho nem
pra ir ao cinema com a minha garota! Lembra ou não lembra? Acenei que lembrava
e ele completou: Pois é, vim te pagar. Fez-se silêncio. O vento parou. O tempo
parou! Os movimentos se tornaram lentos como em Matrix. Me pagar?!
Sabe
quanto faturei no jogo do bicho? Sabe?! Dez mil quilos de alcatra, meu amigo!
Eu não ouvia som algum, só um zumbido ininterrupto em minhas orelhas, a
gargalhada sem som e interminável do Jabá, que enfiou a mão no bolso e puxou um
bolo de notas de cem. Quanto eu te devo? Trezentos?
Cascabulho
de milho! Trezentos já cobriria o cinema. Eu ia transar! Nem lembrava quanto
emprestei. Você é meu irmãozinho de todas as horas, ele estava falando, já me
livrou a cara muitas vezes, então pega aí. Contou dez notas de cem e enfiou na
minha mão. Até mais, depois nos falamos. E se foi, me largando ali com uma alegria
absurda, que causava calafrios pelo corpo todo. O telefone! Ela estava à espera
havia mais de dez minutos! Oh, não, não, por favor, não!
Corri
para o sofá em câmera lenta, ao som de Carruagens de Fogo, agarrando o telefone
e quase enfiando na orelha. Se ela tivesse cansado de esperar e desligado...
Por favor, Deus, não!
Alô?!
Alô?! Voltei, meu amor, perdão, eu... Apavorado, demorei a perceber a voz suave
e paciente, quente e sedutora, dizendo que tudo bem, estava preparada para me
esperar por toda a eternidade. Tomei fôlego, apertando a grana entre os dedos e
mudei o tom de voz. Agora eu era o rei da cocada preta, o astro do amor e da
flor, o garanhão vitorioso que faria amor gostosamente por toda a noite, e, de
manhã ainda pagaria um café da manhã reforçado, com suco, papaia e croissant
para impressioná-la.
O
cinema está confirmado, querida! Saboreei o prazer dela apertando as pernas do
outro lado da linha. Só que, continuei, antes de voltarmos à sua casa para a
premiação deliciosa e inesquecível, insisto em levá-la ao seu restaurante
preferido! Sim, sim, meu amor! Flores, champagne... Agora quem passou a falar
pausadamente fui eu, com voz de locutor FM, enrouquecida pela antecipação...
Ela quase teve um orgasmo ali mesmo. Uma hora ou duas depois nos despedimos,
para nos prepararmos para o programa.
A
noite foi perfeita. Pelo menos pela expectativa criada por mim. Ela estava
linda, deslumbrante, mexendo com todos os meus sentidos a cada movimento que
fazia. Aqueles sorrisos me atingiam como chicotadas, de um lado para outro do
corpo.
No
carro trocamos beijos ardentes, conversamos baixinho, emocionados; errei o
câmbio mil vezes para descansar a mão em seu joelho. Ficamos quinze minutos no
estacionamento, dando uns malhos de responsabilidade; depois fugimos do
guardador de carros que circulava por ali de moto, ela ajeitando a saia, eu
arrumando os cabelos. O filme que ela escolheu era um clássico iraniano que
documentava a vida de um cidadão idoso com o sonho de se conectar ao mar
através da alma. Quase não havia diálogos, mesmo porque o mar não falava, e ao
fundo o som de bombas explodindo e de metralhadoras. Deprimente. O que foi
ótimo porque me concentrei nela e mandei a droga de filme às favas. Ela
assistiu ao filme como pôde, mas não reclamou dos carinhos. Eu era um
verdadeiro polvo, cheio de braços, mãos e línguas. Não me pergunte, eu nem sei
se polvo tem língua!
Depois
do filme, o jantar. Eu prometi, então tinha que ser paciente. Fomos a um
restaurante italiano e pedi o melhor vinho. A tarantela comia solta e meu
pensamento idem. Estava inebriado pela mulher mais atenciosa e promissora do
mundo! Cada gesto, cada palavra significava uma promessa implícita do que viria
em seguida. A madrugada seria pequena para o que aconteceria. Quando ela
piscou, bem sacana, não marquei touca; chamei a conta imediatamente. Paguei e
constatei que, após a gorjeta do valete, sobraria na carteira trintão. Três
notas de dez. Menos do total com o qual comecei o dia; mas estava exultante.
No
elevador e no corredor do prédio dela, testamos o perigo de sermos flagrados e
subimos e descemos do térreo ao último andar diversas vezes. Paramos à porta
para recuperar o fôlego e a compostura, ela abriu a porta e me mandou entrar,
pedindo silêncio. Obedeci e ela se retirou imediatamente.
Da
sala escura vislumbrei a sala de jantar com uma luz tênue, difusa, tornando o
aspecto excitante de uma casa de tolerância para milionários. Tirei o blazer,
abri os botões da camisa, soltei o cinto e me livrei dos sapatos, ficando de
meias, esfregando as mãos. O meu presentinho seria inesquecível! Já estava
salivando, desenhando no cérebro a entrada triunfal dela, apenas com uma
lingerie transparente, me convidando com um gesto para a mesa de jantar, na
qual seria a minha mulher sushi!
Já
não aguentava mais de ansiedade. Ouvi passos. Estava com os braços abertos,
aguardando o meu tesouro quando a palavra “surpresa!”, igual àquelas festinhas
de aniversário, gelou o meu sangue.
Ela
continuava vestida e sorridente. Ao seu lado, um casal. O homem careca, trajando
paletó escuro e com cara de poucos amigos, de braços dados com uma senhora de
vestido rosa choque e excesso de maquiagem ao lado dela, sorrindo a toa.
As
palavras nebulosas ditas por ela penetraram na minha cabeça ao mesmo tempo em
que minha visão escurecia; a pressão caía de uma só vez.
Meu
amor, começou ela docemente, achei que esse era o timing exato para, na hora da
definição do nosso relacionamento, e agora sei que será eterno, fazer-lhe essa
surpresa sem par! Eu engoli em seco. O ódio tomando conta do meu ser. Ela
continuou o discurso, alegre, vivaz... Idiota.
Tenho
a imensa honra de apresentar-lhe os meus pais! Os seus sogros que estarão, de
agora em diante, constantemente em nossa vida. O meu pai trouxe uma garapa
especial feita por ele mesmo na fazenda, para brindarmos por uma vida feliz.
Aproxime-se,meu amor, esse é o minuto mais feliz de nossa vida!
Naquele
momento eu quis morrer!
Marcelo Gomes Melo
Marcelo vc é excepcional em criar esse suspense e depois transformar tudo em risadas, amei.
ResponderExcluirNão confunda expectativa com realidade! Genial a história,quanto ao final: felizes para sempre?Rsrs
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