Ela
cometeu suicídio aos vinte e oito e agora pairava como um fantasma pelos pubs
em que ele tocava saxofone e depois do show passava horas bebendo cerveja irlandesa,
pensativo, distante, sem emitir outro som que não fosse a respiração atarantada
de um homem sem propósito.
Observando-o
no palco, agora de chapéu enterrado na cabeça, daqueles de feltro que escondiam
os olhos e a barba mal cuidada, parecia uma sombra da pessoa feliz que costumava
ser com ela em vida. E a sombra era ela, espalhando uma espécie de fog com a
sua não presença, sentindo-se às portas do paraíso ao ouvir cada nota que saía
daquele saxofone, tristes a ponto de hipnotizar casais apaixonados, que se
perdiam em suas histórias e fazer chorar os corações solitários embriagados que
passavam as noites acordados, sem chance alguma de dormir em paz, fossem quais
fossem as razões.
Para
ela as notas eram o impedimento para que desapegasse da terra e permitisse que
a alma adentrasse o paraíso para onde deveria se dirigir de uma vez por todas,
mas suicídio era um impedimento ainda maior, pois suicidas não iam para o paraíso
jamais.
Noite
após noite ela renovava o amor que sentia por ele, e ao mesmo tempo sofria e se
desesperava com a solidão que o consumia, a bebida que o enganava e não
arrancava a dor da perda. Ele jamais saberia a razão pela qual ela optou pela
saída através da porta dos fundos da vida, já que era amada como nenhuma outra
e sabia. Também sabia que ela era metade de sua alma, do seu corpo e de sua
existência entrelaçada por sorrisos e sol, maçãs e vinho tinto.
Um
dia se viu abandonado sem explicação e a angústia quase o destruiu por
completo, não fosse o instrumento que o mantinha algemado à vida terrível,
combatendo a sensação de inutilidade e o desejo de segui-la aonde quer que
fosse para obter alguma resposta, nem que isso significasse fazer o mesmo
caminho, sem garantias de encontra-la cometendo o mesmo ato brutal que ela, por
falta, sobretudo, de coragem.
Às
vezes sentia um arrepio enquanto tocava, e poderia jurar que o perfume dela o impregnava
e ao seu instrumento. Por mais que tentasse não conseguia conectar-se a ela no
além.
Ali,
pairando, ela o viu, sem nada poder fazer para impedir, sair pelos fundos do
pub, embebedado, sem forças nem motivação. Do alto o observou parar em frente a
uma lixeira no beco escuro. Pensativo, arrasado tirou o chapéu e olhou para o
alto como se soubesse onde ela estava.
Foi
aí que ela viu os seus olhos azuis avermelhados, cercado de olheiras, banhados
em lágrimas. Com a alma efervescente olhou quando ele ergueu a lixeira e atirou
o chapéu. Quid gritar, mas não era ouvida do local em que se encontrava, era um
plano diferente. Em seguida o saxofone, jogado no lixo. A dor que ele sentia
era tão viva que se estendia pelo ar e a feria na alma, desesperadamente.
Afastou-se
com as mãos nos bolsos do casaco, cabeça baixa, largando tudo para trás. Ainda
vivo, em farrapos. Quando chegou à rua iluminada olhou para trás onde jogara as
duas preciosidades que possuía e que só valiam com ela. Não notara n ada
diferente, mas naquele instante ela se sentiu evaporando, sumindo do mundo dos
vivos definitivamente. Uma história de amor eterno que se manteria secreta para
vivos e mortos. Sem solução para ele, sem solução para o mundo dos espíritos.
Marcelo
Gomes Melo
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