Ela
estava sofrendo por amor quando entrou em meu escritório. Parecia não dormir há
dias e a maquiagem se assemelhava à do coringa. Provavelmente entornara uísque
suficiente para embriagar uma cidade inteira, não muito populosa. Aceitou o
café e fez careta ao tomar, talvez porque não tinha álcool nem açúcar, e estava
quente.
Era
jovem, ainda, daquelas que podem fingir inocência para qualquer um com o
coração mole e a carteira recheada, mas estava por baixo da carne seca no
momento. Deixara-se prender na própria armadilha e se apaixonara, quando
acontecia exatamente o contrário. Sempre havia alguém mais esperto.
Ao
morder a torrada fez cara de nojo; devia estar sem nada no estômago há dias;
algo sólido. De braços cruzados a observei sem demonstrar emoções, gente como
ela é muito sensível e ao menor sinal de pena dispara seu arsenal de palavrões
e se afasta. Essa viera por livre e espontânea vontade, então talvez ainda
pudesse ser ajudada, salva ou afundada na lama, dava no mesmo.
Ela
comia em silêncio e eu anotava em silêncio coisas como: “parece não tomar banho
há dias, só tem essa roupa”; talvez precise consultar um médico após um banho
demorado, roupas limpas e muitas horas de sono.
Não
estamos aqui para julgar ou pressionar, só assim o que fazemos pode ser
considerado ajuda. Eles pedem e recebem. Se mudarem de ideia depois de limpos,
sem sarna ou piolhos, a porta da rua é serventia da casa. Por falta de adeus,
tchau. Nem todos querem salvação, querem tirar algum proveito e retornar ao
ponto de início, eventualmente. São livres para isso, e ajudamos porque
queremos, então...
Treinados
por anos nesse ambiente somos capazes de determinar a causa do desespero dessas
aves de rapina apenas com um olhar. Aquela era vítima da paixão doentia, que a
ilude desde adolescente, e agora a domina a ponto de não ter volta. Enquanto
ela come o pão e toma o café, alguém abre a porta e me chama para um
atendimento mais urgente.
-
Padre, por favor, temos um surto aqui...
Marcelo
Gomes Melo
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