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Porco espinho século XXI



Adentrei ao ônibus às oito da manhã em ponto, com um facão atravessado na vertical, protegido por uma embalagem de couro estilo Lampião, pronto para ser sacado. A máscara cirúrgica cobria quase tudo o rosto como recomendado, e o boné mal deixava distinguir olhos gelados, desconfiados e atentos sob sobrancelhas cerradas.
No bolso da jaqueta de couro um canivete com soco inglês. Os braços e costas da jaqueta contavam com acessórios cortantes e pontudos, feitos para manter afastadas as outras pessoas. Eu me sentava na cadeira perto da porta de descida, sozinho, ninguém ousava ao meu lado, embora não demonstrassem medo em suas feições arrogantes que evitavam me encarar. Era mais apreensão do que medo. Muitos gostariam de andar como eu, estranho, mas protegido o máximo possível do vírus.
Talvez pensassem que eu não sabia como se referiam a mim, entredentes: o porco espinho das oito horas. No outro bolso eu carregava uma garrafa de detergente, já que não havia álcool gel. Ninguém jamais me incomodava nem falavam comigo, até gostavam de permanecer a dois metros de mim, como se eu fosse um verdadeiro herói espanta vírus.
Eu também não falava com mais ninguém. Nunca mais fizera contato visual com as pessoas, falava o essencial, mal movendo os lábios por trás da máscara. Era um presente desses anos perdidos, ceifador das vidas dos tolos e dos carentes, confiantes demais em algo que nem podiam enxergar.
Agora não havia mais flertes. Os vivos se individualizaram a esse ponto. O papo furado de união vendido por políticos e todo o tipo de aproveitadores na mídia gerara um efeito contrário. Existir era duro e cobrava um preço cruel.


Às nove entrava no metrô. Ninguém viajando em pé. Esse era um ambiente mais propício para gente precavida como eu, seres considerados estranhos em outros ambientes. Homens cobertos por enormes mosquiteiros, mulheres usando roupas muçulmanas mesmo sem que o fossem, garotos de armadura... Era o preço a pagar para se locomover pelas ruas, em contraste com o sol e a natureza.
Lanches embalados por plástico e folhas de zinco eram vendidos. Bebidas eram ingeridas através de canudos esterilizados, descartáveis, sem tocar os lábios. Os empregos mudaram radicalmente, as lojas eram bolhas de plástico e tudo no ambiente era artificial.
Nunca precisei sacar o facão, as pessoas eram boas, cada uma cuidava da própria vida. A arma era apenas para o caso de encontrar qualquer político, qualquer um que ousasse sair de suas mansões cercadas pela polícia. Eram espertos, jamais o fariam.



Marcelo Gomes Melo
 
 

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