Adentrei
ao ônibus às oito da manhã em ponto, com um facão atravessado na vertical,
protegido por uma embalagem de couro estilo Lampião, pronto para ser sacado. A
máscara cirúrgica cobria quase tudo o rosto como recomendado, e o boné mal
deixava distinguir olhos gelados, desconfiados e atentos sob sobrancelhas cerradas.
No
bolso da jaqueta de couro um canivete com soco inglês. Os braços e costas da jaqueta
contavam com acessórios cortantes e pontudos, feitos para manter afastadas as
outras pessoas. Eu me sentava na cadeira perto da porta de descida, sozinho,
ninguém ousava ao meu lado, embora não demonstrassem medo em suas feições
arrogantes que evitavam me encarar. Era mais apreensão do que medo. Muitos
gostariam de andar como eu, estranho, mas protegido o máximo possível do vírus.
Talvez
pensassem que eu não sabia como se referiam a mim, entredentes: o porco espinho
das oito horas. No outro bolso eu carregava uma garrafa de detergente, já que
não havia álcool gel. Ninguém jamais me incomodava nem falavam comigo, até
gostavam de permanecer a dois metros de mim, como se eu fosse um verdadeiro
herói espanta vírus.
Eu
também não falava com mais ninguém. Nunca mais fizera contato visual com as
pessoas, falava o essencial, mal movendo os lábios por trás da máscara. Era um
presente desses anos perdidos, ceifador das vidas dos tolos e dos carentes,
confiantes demais em algo que nem podiam enxergar.
Agora
não havia mais flertes. Os vivos se individualizaram a esse ponto. O papo
furado de união vendido por políticos e todo o tipo de aproveitadores na mídia
gerara um efeito contrário. Existir era duro e cobrava um preço cruel.
Às
nove entrava no metrô. Ninguém viajando em pé. Esse era um ambiente mais propício
para gente precavida como eu, seres considerados estranhos em outros ambientes.
Homens cobertos por enormes mosquiteiros, mulheres usando roupas muçulmanas mesmo
sem que o fossem, garotos de armadura... Era o preço a pagar para se locomover
pelas ruas, em contraste com o sol e a natureza.
Lanches
embalados por plástico e folhas de zinco eram vendidos. Bebidas eram ingeridas
através de canudos esterilizados, descartáveis, sem tocar os lábios. Os
empregos mudaram radicalmente, as lojas eram bolhas de plástico e tudo no
ambiente era artificial.
Nunca
precisei sacar o facão, as pessoas eram boas, cada uma cuidava da própria vida.
A arma era apenas para o caso de encontrar qualquer político, qualquer um que
ousasse sair de suas mansões cercadas pela polícia. Eram espertos, jamais o
fariam.
Marcelo
Gomes Melo
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