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Morte iminente, culpa zero



      A voz metálica e bonita da mulher, gravada digitalmente anunciava, sexy: “térreo”. A figura suada e desarrumada, olhando para todos os lados, olhos desvairados, desconfiados, cabelos espalhados e mãos trêmulas sufocou um urro de ódio e frustração quando não conseguiu vaga no elevador. Mais uma vez, como em toda a sua vida, fora deixado à margem, ignorado e humilhado; mas seria a última vez.

     Franzindo o cenho, com os dentes trincados parecia um touro furioso, prestes a investir contra a parede com cabeçadas potentes e destruidoras.

      Assim que encontrou as escadas decidiu não esperar mais. Esperara a sua maldita vida inteira! A fila de merenda, a fila do ônibus, a fila do metrô... A chance de se aproximar da Osvalda, a mulher da sua vida, ajudante de serviços gerais daquele prédio luxuoso, uma retirante da seca nordestina que comia farinha com rapadura e chegara à cidade grande em busca de uma vida melhor. Ele, e mais ninguém, pensou, fungando forte, subindo os degraus de três em três, arranjara o emprego para ela. Ele, e só ele tirara a Osvalda da lama podre da miséria e promovera a sua ascensão ao nível humano.

       Já no sexto andar olhou o relógio, esbaforido, sem hesitar em continuar a marcha, que terminaria no vigésimo oitavo andar com a sua declaração de independência a um mundo cruel.

       A safada agora usava até batom! Aqueles lábios rachados antes nunca viram tais enfeites. Respirou fundo no décimo andar, lembrando de quando levava Osvalda para tomar café com leite e uma fatia de pizza no final do turno de tardezinha. Ela nem sabia falar “pizza”!

       Ele era a figura humana mais próxima de um deus para Osvalda, ela tinha que reconhecer! Comprara creme para aliviar os calos daquelas mãos duras e pés chatos com dedos separados. Praticamente a transformara em uma mulher da raça humana, com roupas bonitinhas e não aqueles trapos que costumava usar, confeccionados com sacos de farinha de mandioca.





         No décimo oitavo andar a dificuldade para respirar era grande, o rosto vermelho denotava problemas físicos, mas a coragem e o ódio continuavam os mesmos. Ele era um rei! Homem bom, de família, trabalhador... Iria cometer suicídio em nome de todas as qualidades que o universo ignorava. A falta de elogios, a avidez com que se aproveitavam dele em troca de nada...

        Osvalda o decepcionara. Aquele cabelo que jamais vira um pente agora tinha corte e xampu, estava cheiroso graças às indicações dele! Levara anos até ousar se declarar, pedindo-a em namoro com o coração na boca. Nunca antes a tocara, mas ao roçar em sua mão de lixa sobre a mesinha de madeira ela recuara como se tocada por um réptil. A gargalhada fina, cheia de desprezo fora um golpe mortal.

      Quando explicara que não era mulher para o bico dele, Osvalda tinha uma expressão irônica de pena naquele rosto recauchutado que antes fora um pergaminho. Colocara a si mesma acima dele, dizendo sem meias palavras que merecia alguém hierarquicamente superior a ele, mero faz-tudo. Ela pretendia se amasiar com algum porteiro de prédio ou garçom; com sorte até um motorista de táxi...

         No vigésimo sexto andar, bufando arroxeado amaldiçoou a Osvalda, espumando de raiva! Iria se matar e deixa-la conviver com a culpa para sempre!

      Vigésimo sétimo andar, cambaleante, olhos mortiços, encurvado, já se questionara se teria forças para voar em direção ao além.

        Vigésimo oitavo. Cumpriria o seu objetivo, ninguém o impediria! Deu três passos a caminho do parapeito e tombou, esverdeado...


           Não conseguiu nem isso. Morreu antes de se matar, infarto fulminante. Osvalda jamais saberia que era a causadora de sua morte; carregaria zero de culpa. Era mesmo um inútil até para morrer, foi o seu derradeiro pensamento.



Marcelo Gomes Melo


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