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O tanatólogo. A terra dá, a terra toma.



          Leio Baudelaire como se fosse um santo na alcova de uma loura lasciva entupida de crack e anfetaminas. Meus lábios se movem em câmera lenta, os dentes trincados. Alterno com uma suavidade implícita, uma serenidade hipnótica que cativaria a uma morta.

          Sirvo absinto à luz de velas, The Cure nas caixas de som instigando venenos, minha aura de garoto prodígio aumentava, seduzia as mulheres rebeldes com as meias-calças rasgadas e minissaias negras como a alma que almejam conquistar. Batons e unhas negras, uma força extrema para o amor passageiro, enganador.

          Formado tanatólogo, a profissão que estuda a morte e seus meandros científicos, me tornei um craque na área, usando sua descrição às vezes para seduzir, do tipo: “Nua sobre a maca fria, será lavada dos cabelos aos dedos dos pés por mim, o seu guardião. Tocarei cada parte de você com minhas mãos quentes. Saiba que, depois de morta será tratada com extremo cuidado e carinho”. “Cobrirei seu corpo, não se preocupe, na presença dos outros funcionários, mas verificarei cada reentrância no seu corpo com atenção, em busca de descobrir os seus segredos mais obscuros. Cabelos, olhos, partes pudendas... Tudo! Como diria o poeta... Sua inocência é minha!”.  Isso funcionava como cantada! Inacreditável, hein?!

          Fiz um curso do ópio do século, o marketing, para expandir os negócios e abrir uma franquia de cemitérios. Dominei o negócio das flores, das palestras instrutivas para quem iria um dia morrer; criei o serviço de drones sobrevoando aos túmulos para manter  os vivos em contato com seus entes queridos habitantes sob a terra 24 horas por dia.

          A minha profissão me garantia seduzir facilmente as garotas, principalmente as estranhas. Eu contava que depois de morta as tornaria perfeitas externamente. Eternas. Essa ladainha em minha voz de Vincent Price e olhar de Bela Lugosi, vestido como um Drácula do terceiro milênio dava muito certo. Transei em caixões luxuosos, dentro do salão da funerária, fiz piqueniques de madrugada no meio das lápides, bebendo conhaque e recitando poemas escatológicos de Augusto dos Anjos. Aos vinte e cinco eu era rei! Dos mortos; mas ainda assim, rei!

 
Os dois irmãos me deram sociedade e passei a ser um dos proprietários. Eis que surgiu Arlete. A coisa mais intrigante entre as mulheres estranhas e atraentes do mundo sombrio. Com seu estilo de vocalistas de bandas femininas suecas de Black metal, longos cabelos negros, olhos azuis de cílios gigantes e batom escuro em lábios carnudos em um vestido de sereia, escuro como a noite e decotado como o Canyon. Nem sei como cabia nela! Ou se nascera com ela! Linda e misteriosa entrou na minha vida como um vulto. Não disse nada, apenas prometeu com os olhos. Entreabriu os lábios e pousou a mão sobre a minha.
Noites de amor fulminante me fizeram o estranho mais maravilhosamente feliz do mundo das sombras. Mudei de perspectivas com ela; passei a querer tudo o que o mundo material pudesse me oferecer.
Arlete me prometia o sucesso e todo o poder que um jovem adulto podia querer, além dos seus doces e gelados encantos. Antes que eu perguntasse como, me vi envolvido em um carrossel de situações inacreditáveis que realmente balançaram a minha vida.
Os dois irmãos restantes, proprietários do cemitério, faleceram súbita e inexplicavelmente, deixando a mim como o único dono. Aceitei o fato como signo da vida e, após a comemoração e champagne com Arlete, mudei o nome do empreendimento para “Cemitério sem irmãos”.
Com uma conselheira como Arlete, a mulher da minha vida, iniciei a compra de diversos quarteirões para a proliferação dos cemitérios por todos os cantos, oferecendo uma morte feliz a pobres e ricos.
Arlete enchia o meu corpo de prazer e a minha mente de ideias. Em três anos havia mais cemitérios do que shopping centers. Só estava faltando mortos o suficiente para garantir os lucros. Seria eu o Odorico Paraguaçu das grandes metrópoles?
A grande oferta de cemitérios com caixões de todos os tipos e preços, facilitando a morte despertou a ira dos defensores dos direitos humanos e dos animais. Eu era processado pela acusação de oferecer cigarros com intenção de acelerar as mortes e de querer abrir cemitérios e crematórios para animais dos quais os donos enjoassem e não tivessem a quem doar. Igrejas fundadas em torno do dogma da imortalidade do corpo e da alma caíram impiedosamente sobre mim com processos e mais processos; enriqueceriam às minhas custas. Aos trinta e cinco já estava completamente estressado, desconfiado de todos e cínico. Estava em franca derrocada e tudo o que me restava era Arlete.
 
Ela jamais demonstrava nenhuma preocupação, nem mesmo quando comecei a vender cemitérios para saldar dívidas. Era a única a estar sempre por perto e me apoiar com gestos e carinhos. Não estava presa a mim por causa de dinheiro. Amor além da vida, diria eu!
O meu primeiro infarto veio aos 38, rápido como um raio. Saí da UTI vinte dias depois, esperando encontra-la ali, ao lado da cama, pronta pra mim, mas... Nem sinal de Arlete!
Perguntei a todos, mas ninguém sabia de quem eu estava falando. Enfermeiras, médicos, vigias, outros pacientes... Ninguém jamais vira nenhuma bela moça vestida de negro ao meu lado em nenhum momento. Eu comecei a me preocupar quando os dias se passaram e ela não vinha. Liguei para um celular inexistente. A minha casa havia sido leiloada e não a encontrava de jeito algum nas redes sociais.
No auge do desespero, em uma noite fria fugi do hospital, descalço e com aquela camisola descartável. Encontrei o meu carro no estacionamento do hospital e fui para o único lugar que me restava no mundo: aquele primeiro cemitério no qual iniciei a minha carreira.
Rompi o portão como em um filme de Chuck Norris, acelerando o carro. Sob a chuva o cemitério, antes tão bem cuidado parecia abandonado. Desci e caminhei, a esmo, chamando por ela, sem resultado, até que me deparei com uma cova aberta, enlameada como uma piscina de cobertura de bolo de chocolate.
Uma voz sussurrava alguma coisa em meu ouvido incessantemente, mas eu não entendia o que dizia; as batidas aceleradas do coração encobriam o som da voz, suave. Sentia o corpo desfalecer e era como a sensação de perder dinheiro. Caí de joelhos à beira da sepultura, a voz insistente angustiante...


O vulto que divisei foi tão rápido que questionei a minha capacidade mental e visual. Arlete! Só podia ser Arlete, com aquele vestido negro esvoaçante!

Estendi os braços, desamparado sob a chuva e me desequilibrei, voando a caminho do desconhecido com uma forte dor no peito, no fundo da cova para indigentes. Então entendi a voz suave e repetitiva em meus ouvidos. Arlete, etérea como uma névoa, me dizia: “A terra dá, a terra toma”. E mergulhei na escuridão.

 



Marcelo Gomes Melo

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