Contos
de natal
Rabanada:
Prazer e dor!
Bicudo era o verdadeiro
filhote do capeta. Feio que nem a fome, desfigurado como um quadro de Salvador
Dali, sem a genialidade, é claro. Apesar de bom garoto, como todo adolescente
tinha o estômago maior do que o cérebro, e estava sempre com fome. Nos dias
normais ele assaltava a cozinha constantemente. Nos dias de feira comia uma dúzia
de bananas de brincadeira, em segundos. Letícia era condescendente e permitia.
A rabanada, não. Era véspera de natal, a rabanada era santa, não podia ser
comida assim facilmente antes da hora.
Bicudo ainda se lembrava do incidente do ano anterior, que
ficara marcado para sempre em seu rosto. Assim que entrou na sala, Jorjão, seu
tio, o chamou para confabular. Bicudo tinha uma vaga ideia do que se tratava e
olhou significativamente para a cozinha, inspirando fundo, tragando todo o
cheiro gostoso das suas narinas para o cérebro. Em seguida se lembrou da panela
de óleo fervente escorrendo pela cara, a dor interminável, o cheiro de carne
queimada se misturando ao de rabanada macia...
Jorjão curvou o corpo para a frente, encostando a boca da
orelha carcomida de Bicudo, e sussurrou lascivamente:
- Bicudo, tem rabanada. – Bicudo olhou para a cozinha, os
olhos esgazeados, mas não disse nada – Rabanada quentinha, cheia de leite
condensado. É a hora, Bicudo. Vai deixar passar?
- Só depois da meia noite, tio, você sabe. – Bicudo acaricia
gentilmente a parte do rosto que estava queimada como plástico derretido.
- Esse ano, não! – a voz de Jorjão estava endiabrada,
encantada pelo cheiro e sabor de uma rabanada suculenta e irresistível. – Ela está
de costas, chega por trás e...
- Por trás, não, tio! – Bicudo corta, apavorado – Se ela me
pega estou morto! – Mas não podia evitar salivar.
- Bicudo, escute o seu
tio... Tenho um plano pra você comer a rabanada agora! – Bicudo fica alerta
imediatamente – Ela está na pia, lavando louça. Está cantando, pode ouvir? –
Bicudo assente positivamente com a cabeça – Então... Você entra naturalmente,
por trás da mesa e... Estica o braço lentamente... – Jorjão faz os movimentos, demonstrando
como ele deveria fazer o gancho com o polegar e o indicador para abduzir a
rabanada, levando-a à bocarra. – Ela nem vai perceber. Você sai pela porta da
cozinha e vai comer lá atrás, na lavanderia! – esfrega as mãos, babando na
barba como um anormal – Não perca essa chance, Bicudo! Elaborei esse plano,
como seu tio do coração que sou, para que seja presenteado com a primeira
rabanada! Antes do natal. Terá essa história imbatível para contar aos netos,
sobrinhão Bicudo! – dá uns soquinhos amistosos nas costas do enlouquecido
garoto. – Vai pra cima!
Jorjão elaborara o plano durante um ano inteiro! Remoera a
possibilidade de se aproveitar da fraqueza de Bicudo para comer a rabanada de
Letícia. Usaria o próprio sobrinho em benefício próprio.
O mais difícil seria convencer Bicudo, mas isso acontecera
rápido. Agora era ficar atento para a manobra evasiva que o faria o gênio
comedor de rabanadas digno do prêmio Nobel!
Bicudo se dirige à cozinha, lentamente, acariciando as cicatrizes
do rosto, lambendo os lábios, saboreando a rabanada mentalmente. Letícia
cantarolava enquanto, de costas para a mesa, lavava alguma coisa na pia. A
bandeja de rabanadas estava exposta. Bicudo parecia um ninja, pé de veludo, um
à frente do outro, do jeito que vira nos filmes do FBI invadindo casas. A cada
passo a rabanada ficava maior, mais gostosa e cheirosa.
Jorjão pusera-se em pé e estava dois passos atrás de
Bicudo, suando demais e tremendo. Não voltaria atrás, seja lá o que
acontecesse. Sairia vencedor e com a rabanada entre os dentes de qualquer
maneira!
Bicudo se aproxima ainda mais, a voz de Letícia se transformando
em um zumbido alto em seus ouvidos. Os olhos enevoados não saltavam da bandeja,
os dedos se esticaram lentamente, cortando o ar. Os dedos em gancho tocaram a
rabanada mais próxima, sentindo a consistência. Já ia puxar... Jorjão, dois
passos atrás dele, viu que era o momento de entrar em ação! Cobrindo a boca com
a mão, tossiu, chamando a atenção de Letícia.
Em segundos o caos se
instalou naquela cozinha natalina! Ele tossiu; Bicudo, com os dedos na rabanada
o olhou, desesperado. Letícia, que estava com a machadinha cortando frango na
pia, virou-se como um raio e flagrou Bicudo. Sua mão direita empunhando a
machadinha desceu como um raio em direção à mesa e decepou os quatro dedos de
Bicudo colados à rabanada.
Bicudo urrou de dor e susto, enquanto o sangue jorrava
sobre a mesa, batizando a rabanada que iria confiscar. O plano de Jorjão dera
certo! Sacrificar o sobrinho para herdar uma rabanada na confusão. Nervoso e
apavorado, cobriu a distância até Bicudo, enquanto Letícia se virava para pegar
um pano de prato e enrolar na mão sem dedos do garoto. Pegou a rabanada enorme
e dourada, manchada de sangue e enfiou toda na boca, empurrando com as duas
mãos enquanto corria para a sala, fugindo da visão de Letícia, que agora,
calmamente amarrava a mão de Bicudo tentando estancar o sangue. Bicudo chorava
alto. Letícia afastava a bandeja de rabanadas para não estragar quando percebeu
que faltava uma. Depositou a bandeja sobre a geladeira e voltou-se, furiosa,
para o garoto sentado no chão, tentando recolher os dedos cortados.
- Cadê, Bicudo? Cadê a rabanada?! Devolve! – ela puxou os
cabelos dele e levantou sua cabeça, espetando os dedos em suas bochechas,
obrigando-o a abrir a boca. Olhou lá dentro, disposta a enfiar uma tesoura no
fundo de sua garganta para resgatar a rabanada. Surpresa descobriu que não
havia nada lá. Nem vestígio de canela. Não daria tempo de comer uma rabanada de
quatro quilos em segundos, com os dedos cortados.
Foi aí que uma luzinha se acendeu no fundo de seu cérebro.
Jorjão! O safado do Jorjão... Fechando as mãos como se fosse socar alguém,
Letícia se dirige à sala, chamando Jorjão com voz estridente. Antes de entrar
na sala ouviu um barulho.
Quando chegou à sala, Jorjão estava estendido sobre o
tapete. Tropeçara na mesinha de centro de vidro e a destruíra com seu peso. Ela
se aproximou de um homem gigante esverdeado, olhos saltados e espumando pela
boca. O pomo-de-adão estava enorme e roxo. Ela logo sacou a razão. Ele estava
tentando engolir a rabanada de uma vez só. Engasgara! Impiedosamente Letícia
tenta virá-lo à força; não para salvar sua vida do engasgamento, mas para
recuperar a preciosa rabanada. Com força sobrenatural esmurra suas costas com
força; tapas na nuca e na cabeça não adiantaram nada. Pensou um pouco e voltou
à cozinha, onde Bicudo desmaiara, pegando uma faca enorme de cortar peixe, com
a ponta afiada, retornando ao local em que Jorjão agonizava.
Segurando-o pelos
cabelos abriu um talho em sua garganta e escarafunchou com a ponta da faca até
puxar a rabanada pra fora, quase inteira. Acompanhada de um dos dedos de
Bicudo.
- Ninguém come antes da meia noite! – a empregada psicopata
falou, levando a rabanada de volta para a cozinha.
O último pensamento de Jorjão foi sobre a ironia de haver
debochado da pessoa que morrera engasgada com uma fatia de panetone. No dia
seguinte estaria no obituário de natal por um motivo parecido.
Marcelo
Gomes Melo
Porra Marcelo,cara você tem aí umas rabanadas de ter inveja no bom sentido.
ResponderExcluirUm Santo Natal.
Parabéns e sucesso.
AAP
Quanta coisa por um pedaço de pão molhado no leite e passado no ovo...Ecaaaaa.
ResponderExcluirTrocaria bem a minha parte por uma laranja ou um copo de água. kkkkkkkkkkkkkkk
Depois eu que sou exagerada....
Gostei viu??
Rabanadas que valem a pena loucos sacrifícios, António, até morrer! rs... Valeu, bom natal!
ResponderExcluirEsqueceu-se de que essa rabanada vinha com leite condensado,Silmes! rs... E exageros são sempre bons. Feliz natal! Valeu!
ResponderExcluirUm Santo e Feliz Natal Marcelo,para si e sua família.
ResponderExcluirMuita Paz,saúde e alegria e alguns euros no bolso.
Parabéns e sucesso.
AAP