“A caminho do céu carregado por anjos”. Forjando
o caráter.
Quando garoto, com
quinze anos de idade resolvi procurar o meu primeiro emprego. Queria ter no
bolso uns caraminguás para frequentar os bailes, comprar doces e ingressos para
o futebol e cinema, mas principalmente ganhar uma moral com as meninas, é
claro.
Foi por isso que saí na companhia de mais dois amigos, na
busca pelo primeiro emprego. Fomos a uma firma de nome atraente, mas que não
tínhamos a menor ideia do que fabricava. TRIPAC. A atendente, olhando para nós
com um misto de desconfiança e pena, quis certificar-se do nosso real interesse
em integrar o quadro de funcionários da empresa; dito isso, nos convidou a
entrar para ver a função que exerceríamos, caso contratados.
Ela se deliciou com os nossos aspectos pálidos ao vermos os
funcionários de uniformes brancos, incluindo toucas para proteger os cabelos e
botas de plástico, porque trabalhavam com água fria até os tornozelos, no verão
ou no inverno, em um galpão enorme e escuro, com balcões recheados de
recipientes quadrados também brancos e também de plástico com um fedor
fenomenal de restos que nos revirou o estômago e quase nos fez vomitar. Havia
tripas de porco moídas e sabe-se que lá de mais o quê! Faziam linguiças,
salsichas ou algo parecido. Saímos de lá fugidos sem sequer agradecer à bondosa
e mordaz moça da recepção. Riscamos a primeira empresa da lista.
Por uma semana arranjamos um emprego, eu e meus amigos,
como auxiliares de pedreiro em uma construção na rua em que morávamos. Na
verdade éramos auxiliares dos serventes do pedreiro. Minha mãe levava, todos os
dias, uma hora depois que começávamos a trabalhar, um copão de café com leite e
pão com manteiga, atitude que me fazia morrer de vergonha. Foi a semana mais
esforçada da minha vida! Subia escadas de madeira até a laje, carregando latas
cheias de concreto no ombro, para “assentar caquinhos de azulejos” com o
intuito de evitar possíveis vazamentos.
Durante essa semana de
trabalho, que nos encheu as mãos de bolhas doloridas e atrapalharam muito na
escola no ato de escrever, cabe lembrar que o emprego fora pura insistência
nossa e não fruto de trabalhos forçados por parte dos pais, nem necessidade de
ajudar no sustento familiar; muito menos deixar a escola nossa de cada dia.
Disso eu poderia tirar o cavalinho da chuva. Hoje os adolescentes
que tentam fazer algo parecido com aprender a ter responsabilidade e a ganhar o
próprio dinheiro, correm o risco de serem recolhidos pelo ministério público,
tirando a guarda dos pais imediatamente.
Aquela atitude ajudou a forjar o nosso caráter, acredito
plenamente. Um homem precisa aprender a trabalhar honestamente se quiser, um
dia, formar a própria família. Acostumar a receber esmolas do governo desde
pequenos é algo extremamente perigoso, porque tira a noção valor das coisas, e
do esforço necessário para consegui-las.
Na semana em que trabalhamos pudemos abrir uma conta na
casa em frente, que vendia geladinhos; sorvete de suco artificial
acondicionados em saquinhos plásticos. Era novidade e gastamos todo o salário
da semana com isso e com band aids para as bolhas.
Uma semana depois percebemos que a vida é dura para quem é
mole e mudamos. Conseguimos emprego em uma chácara de japoneses que trabalhavam
na feira. Eu e meus amigos aprendemos a plantar sementes, à distância de dois
em dois palmos para frente e para os lados; a usar a enxada abrindo novas
bolhas nas mãos, e colher alface para encher os carrinhos de mão e levar até os
engradados para lotar os caminhões que iriam às feiras.
A técnica da colheita da alface era bastante inteligente e
peculiar: esticava-se um dos braços e usava-se uma delas como base na palma da
mão, depois colocávamos diversas outras alfaces umas sobre as outras, até em
cima na altura dos olhos, sem derrubar nenhuma até depositarmos nos carrinhos
de mão.
Eu, pessoalmente, não aguentei mais do que cinco dias e
desisti descaradamente sem nem me preocupar em ir pedir demissão e receber
pelos dias trabalhados. Descobri alí que estudar era o grande barato. Bem mais
leve e limpo!
A senhora japonesa,
dona da chácara, se deu ao trabalho de ir até a minha casa acertar os dias
trabalhados e dizer para a minha mãe que era melhor eu estudar; aquele tipo de
serviço era pesado demais para alguém como eu, preocupado com a estética física
para encantar as meninas.
Apesar das desventuras não desisti do objetivo, apenas
mudei de tática. Uma vez, passando em frente a um cemitério, vi que estavam
precisando de vendedores de jazigo. Achei o nome da profissão bastante bonito;
e o ambiente completamente tranquilo me encheu de esperança de conseguir um
trabalho mais leve, afinal, os mortos não falam.
Entrei e fui encaminhado à sala em que haveria uma palestra
e em seguida as entrevistas para o preenchimento das vagas. Hoje tenho noção de
que, já á época a recessão era alta, porque a sala comportava quase sessenta
indivíduos, pais de família, vestidos de paletó e gravata, e um moleque de
dezesseis que nem tinha a noção de que jazigo era sinônimo de túmulo, e nem que
tipo de trabalho era aquele.
Com o decorrer da palestra fiquei sabendo que o vendedor de
jazigos recebia uma pasta preta, recheada por saquinhos transparentes; na capa
o logotipo do “Cemitério Dois Irmãos... Antes eram três”, que consistia na
sombra de três corpos, dois em pé e um na horizontal, dentro de uma cova.
Dentro dos saquinhos, inúmeras fotos dos lotes residenciais de terra para
servir de última moradia para os interessados em contar com segurança no post
mortem.
Aos vendedores cabiam
ir de casa em casa tentar convencer as famílias, muitas morando em casa de
aluguel, a adquirir uma moradia definitiva no cemitério. Os ganhos seriam uma
porcentagem das vendas realizadas, o que não era muito, a não ser que houvesse
vendedores bons o suficiente, e famílias realistas além da conta para investir
na própria morte.
É óbvio que não fui sequer cogitado para o emprego. Mas o
entrevistador tinha uma proposta razoável de emprego e queria que eu ouvisse.
Declarei interesse na mesma hora. O rapaz afirmou que apesar de ter apenas
dezesseis, eu era alto e podia iniciar carreira como modelo. E além disso
faturar uns cobres a mais limpando os jazigos e sendo ajudante de coveiro.
Nunca tinha ouvido falar da existência de agências de
modelos que trabalhassem como representantes de cemitérios; mas aceitei a
oferta e fui para casa, orgulhoso, contar aos meus pais que seria modelo no
cemitério.
A partir daquele dia, durante meio período eu passei a
frequentar o Cemitério Dois irmãos..., varrendo sepulturas, colocando flores e
até copinhos de cachaça em determinados túmulos, faturando gorjetas dos vivos
por cuidar bem dos mortos e economizando para a faculdade.
Quanto ao trabalho de modelo, descobri que não tinha nenhum
glamour, pois consistia em deitar em uma prancha de madeira para que o
carpinteiro medisse tudo certinho na construção dos ataúdes. Eu era um modelo
para a feitura de caixões.
Passei a conhecer
melhor o conteúdo da pasta dos vendedores e a técnica de vendas embutida. As
fotos apareciam hierarquicamente. Ataúdes de primeira qualidade, coloridos,
bonitos, resistentes e confortáveis, cheios de acessórios estavam na frente.
Consequentemente eram os mais caros. Visavam encantar a futura vítima do
sepultamento. No final ficavam as fotos dos caixões mais simples, de
compensando, criados com sobras de madeira ruim, sem pintura nem trincos.
Apertavam o morto lá dentro do jeito que coubesse e pregavam a tampa. Os
ataúdes bonitos vinham com a legenda “A caminho do céu, carregado por anjos”.
Os de compensado traziam a legenda “Penetre como puder nas profundezas dos
infernos. E reze!”.
Ano após ano eu ia gostando cada vez mais do serviço, e me
encantando com o ambiente tranquilo. Tanto que decidi ir para a universidade
cursar tanatologia. Atuaria na profissão e em breve teria o meu próprio
cemitério.
Apesar de ter uma adolescência e juventude com poucas
namoradas, porque a maioria se assustava com o meu trabalho e com a minha
atitude estranha para os padrões da moda.
O sucesso com o sexo oposto veio pra mim com a moda dark,
em que todos os jovens passaram a se interessar por coisas escuras, tristes e a
frequentar cemitérios para ouvir as novas canções inglesas e recitar Baudelaire
e Augusto dos Anjos. Anos depois voltaria a ter sorte novamente com o sucesso
do filme com Bruce Willis, O Sexto Sentido, quando Haley Joel Osment ficou
famoso dizendo que via gente morta. A minha vida amorosa deu um enorme salto de
qualidade! Já profissionalmente...
Continua...
Marcelo
Gomes Melo
Bom artigo.
ResponderExcluirParabéns amigo.
Sucesso.
AAP
Beleza, António! Valeu!
ExcluirEu adoro Ramones, rsrs
ResponderExcluirMas trabalhar no cemitério é um pouco demais pra mim, eu tenho medo de fantasmas.
Sei que vai dizer que mortos não fazem mal, mas isso não me faz perder o medo.
Ficar perto de gente morta eu tô fora kkkkkkk
Como eu diria que mortos não fazem mal com tantos zumbis na política?!rs... Aposto que gostou quando o garoto Osment falou pro Bruce Willis: "I see dead people" rs... Valeu!
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