Rabanada:
Tudo pelo prazer!
A atmosfera natalina
tomava toda a vila a cada fim de ano, como acontecia antigamente em todos os
lugares, mas se perdeu com a modernidade, em que não há tempo para curtir as
festas de fim de ano como se deveria, com reflexão e tranquilidade.
Jorjão, um sujeito que fazia jus ao apelido, com 1,95m e
140 quilos, costumava repetir a sua rotina anual em toda a véspera, cruzando a
sala em busca do jornal, e, no caminho ligando automaticamente a tevê, que
apresentava os mesmos filmes de Papai Noel, neve e um monte de crianças chatas,
falando de desgraças que se transformam em milagres e mais blá, blá, blá.
Vestido com sua indefectível calça de veludo verde e camisa
xadrez, já usando as meias novas que ganhara de presente da mãe, os pés enormes
enfiados no velho chinelo de couro, Jorjão parecia um duende gigantesco de
sobrancelhas grossas e barba negra. Abrindo o jornal e se encaminhando para a
sua poltrona estratégica foi atingido de maneira contumaz pelo delicioso
cheiro. Parou por alguns segundos e respirou fundo, fechando os olhos. Era o
cheiro maravilhoso da rabanada da Letícia, que o deixava com as pernas bambas.
Ela fisgava o corpo e a mente de qualquer um através de todos os sentidos, a
começar pelo cheiro. Era a rabanada mais famosa da vila. E a razão pela qual
Jorjão mantinha a poltrona estrategicamente posicionada era para ter a visão
total da cozinha. Impregnado pelo odor hipnotizante ele sentou-se, imaginando a
rabanada gostosa que se materializava quase fisicamente à sua frente.
Letícia era uma morena alta, de cabelos negros amarrados e
cobertos por um lenço vermelho para não atrapalhar na cozinha; costumava usar
uma saia grossa e comprida e um avental quadriculado em vermelho e branco sobre
a blusa branca de manga curta. Forte e enérgica, Letícia trabalhava na casa da
família de Jorjão há anos, e era famosa como uma artista da cozinha e dona da
rabanada mais deliciosa do planeta. No natal havia quem desse um braço para ter
a oportunidade de saborear a rabanada, coisa que muito poucos conseguiam.
Jorjão fingia ler o
jornal, mas sua concentração estava inteira voltada para os movimentos de
Letícia na cozinha, durante a feitura das rabanadas desejadas até pelos deuses. Observar
aquelas mãos habilidosas depositando ar rabanadas enormes, douradas, macias e
quentinha em uma bandeja era excitante. A língua viscosa de Jorjão, involuntariamente
percorria os lábios ressequidos; as pupilas se dilatavam e ele não conseguia
pensar em mais nada, a não ser comer vorazmente a enorme rabanada de Letícia.
Sabendo que era impossível comer ali, antes da hora, na cozinha, ele passa
vigorosamente as mãos pela cabeça, espalhando os cabelos e procurando afastar
os pensamentos libidinosos, tentando voltar
ao seu outro prazer; ler o obituário de fim de ano no jornal.
O que fascinava a Jorjão nessa época eram as causas pouco
ortodoxas pelas quais as pessoas morriam no fim de ano. E os eufemismos
empregados pelo jornal para dizer que a pessoa morreu: “Deixou de existir
Epifania Leite da Conceição, engasgada com uma fatia de panetone. Infelizmente,
não houve sidra que ajudasse a liberar a passagem na garganta. A família
agradece os pêsames e acredita que ela irá cear esta noite com o menino Jesus”.
Jorjão resmunga impaciente; modo tolo de morrer! “João Moreira foi para o céu
em circunstâncias misteriosas, quando transportava uma árvore de natal nos
ombros para a sua casa, nessa madrugada. Rumores insinuam ter sido atropelado
por renas”.
Jorjão dá um suspiro e amassa o jornal. Letícia cantarolava
músicas de natal de sua terra, no Pará. Ela viera ao mundo na *mesma cidade em
que nascera Jesus, Jorjão pensa, orgulhoso, rindo consigo mesmo. Quem sabe se
tocasse o órgão ficaria mais relaxado. Levanta-se com essa intenção e com isso
fica com a imagem completa da rabanada de Letícia, suculenta, coberta com
canela, molhadinha... Deve pesar uns quatro quilos na palma da mão! Ah, aquela
rabanada coberta por leite condensado...
O olhar de Letícia cruza com o dele e, surpreendido, Jorjão
se encolhe e dá um sorrisinho sem graça, mas permanece imóvel, de olhar fixo na
rabanada. Aquilo era uma entidade extraterrestre, não havia outra explicação,
ele pensa, afogueado. Ela move a bandeja e algumas gotas de leite condensado
com canela caem em câmera lenta em direção ao solo. A boca de Jorjão se
escancara. Ele se imagina rastejando no chão da cozinha, lambendo, lambendo,
subindo pelas pernas... Havia gotas nas pernas da mesa, também, até chegar na
enorme rabanada, passando a língua pelas bordas, abocanhando o centro macio,
degustando com prazer irrestrito. Jorjão quase teve um orgasmo! Foi a voz
ríspida dela que o interrompeu, ordenando a ele que se afastasse da cozinha,
que era pequena demais para os dois. Só aí percebeu que estava quase ajoelhado,
com as mãos estendidas para as rabanadas. Recompondo-se do jeito que dava,
pigarreou e dirigiu-se ao órgão para tocar noite feliz.
Letícia decretara que
ninguém comeria suas rabanadas antes da meia noite. E ela era poderosa. Na rua
os garotos jogavam bola e sentiam igualmente o cheiro delicioso. Um dos
moleques colocara a cabeça na janela da cozinha e levara um golpe de frigideira
na testa. Saiu correndo pela rua, chorando com um galo e o perfume gostoso no
cérebro. Logo Bicudo, o sobrinho de Jorjão, moleque malcriado e guloso,
entraria em casa e insistiria, como sempre, implorando para comer uma rabanada.
Como em todo ano, Jorjão se iludiu com a ideia de criar uma revolução para
comer a rabanada à força. Nunca tinha coragem para algo assim.
No ano anterior Bicudo tentara roubar uma rabanada e uma
panela com óleo quente caíra sobre ele, queimando metade do rosto e da boca,
formando uma espécie de bico que virara seu apelido, desde então. O resultado
foi que passara natal e ano novo no hospital, privado de comer as gostosuras de
Letícia. Ela falara em acidente, e Bicudo aparentemente perdera a memória. Só
de vê-lo desfigurado Jorjão tremia. Mesmo assim, quando ouviu os passos do
sobrinho se aproximando, decidiu. Tentaria comer a rabanada da Letícia antes da
meia noite! Iria colocar um plano infalível em ação, tirado das forças
militares norte-americanas: dividir para conquistar, procurar e destruir.
Usaria Bicudo como isca. Estava disposto a tudo pelo prazer!
*Jesus
não nasceu em Belém do Pará, Jorjão era inculto mesmo.
Continua...
Marcelo
Gomes Melo
Esperando pelo fim...
ResponderExcluirBom aspecto a Rabanada,vou experimentar.
ResponderExcluirAAP
E aí vem o fim! rs
ResponderExcluirManda ver, que a rabanada parece boa!
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