Era a primeira viagem
do astro da música caipira do momento, vertente conhecida como punkpira, a um
país diferente; a primeira vez em que o garoto, que só tinha viajado montando
num jegue toda a sua vida estava em um avião.
Com seu enorme chapéu de cowboy americano com o logo
publicitário de um enorme veado estampado, o camarada flutuava de alegria entro
do avião, hipnotizado com os cubos de gelo que via pela primeira vez na vida.
Quando vira seu empresário colocando os cubos no copo, perguntara alarmado se
ele iria comer vidro, mas logo se convencera de que era apenas pedra d’água.
O cantor era um enorme clichê ambulante, bastante bem
treinado como qualquer jogador de futebol. Se perguntado por qualquer repórter
como estava se sentindo, responderia aos trancos, entre gaguejos e sorrisos que
“um filme estava passando por sua cabeça e lembrava-se das plantações de cana
nas quais trabalhava, na primeira botina de plástico vermelha que comprara a
prazo para fazer um show em um rodeio de porcos...”
O astuto empresário, experiente e viajado, cuidava de tudo
e o astro punkpira não tinha que se preocupar com nada além de seguir todas as
instruções sem pestanejar e colher os louros da fama, riqueza e felicidade. Ele
sabia que estava na hora de passar as instruções ao pupilo antes que chegassem
ao seu destino, local em que faria a sua primeira aparição estrangeira,
difundindo a cultura diferenciada pelo mundo. O rapaz parecia tão confiante e
tranquilo examinando os cubinhos de gelo antes de chupá-los que resolveu puxar
o celular e registrar uma pequena brincadeira que faria com ele. Serviria para
passar o tempo durante a viagem. Antes de descerem do aeroplano contaria a
verdade e ririam juntos; por hora iria tirar um sarro de seu ingênuo e humilde
superstar.
- E então, “Cipó das
candongas”, está tranquilo? - Cipó das
candongas era o apelido do astro nas redes sociais, por ser magrelo, alto e
cercado de celebridades; ele costumava rabiscar isso em seus pôsteres a título
de autógrafo para as fãs – Com medo de viajar de avião?
- Ara, sô, filho de Maria mais eu! Lá sou homem de ter medo
de nada! Isso é meio do que montar em touro brabo! – jamais havia montado em
touro algum, mas fazia parte de seu personagem público, e ele acreditava
piamente.
- Por falar nisso, Kid, tenho pequenas instruções a lhe
passar. Preciso que preste bastante atenção e não se esqueça de nenhuma, pois
disso dependerá a sua vida quando chegarmos ao país dos outros.
- Ara, então fala logo, que eu quero continuar vivo para as
minhas fãs! – o sorriso bovino era claro e exalava confiança.
- Pois bem. – o empresário, que ocupava a poltrona ao lado
da janela vira-se para encarar o astro, sentado na poltrona do corredor, para
iniciar os conselhos – Primeiramente jamais, por motivo algum acene para o
público desse país com as mãos espalmadas, dedos separados, dando tchauzinho;
isso é perigo mortal.
- Mas é assim que aceno para as multidões em todo lugar!
Por que não posso fazer?
- Nesse país – explica seriamente
o empresário – Considera-se uma ofensa inigualável esse tipo de aceno, Morenão!
– era outro de seus apelidos, morenão – Se acenar na direção de um público
masculino indicará que você quer transar com eles de forma selvagem, e se
houver mulheres com eles, significará que está pedindo para fazer o mesmo com
ambos!
- Nossa mãe! – de olhos arregalados, o bom cantor acena com
a cabeça, surpreso – Então não farei isso, sou besta não, rapaz! – depois de
pequena pausa, pergunta – Mas, e se eu me esquecer, o que acontece?
- Provavelmente os atiradores de elite do governo que
estarão posicionados para nos proteger lhe transformem numa peneira humana,
cheia de furos!
- Meu santo canjerão! Quero morrer não, sô muito jovem! – a
voz soara mais esganiçada do que o normal. Percebendo que a brincadeira estava
colando, o empresário se anima em ir mais longe.
- Mas pode ser pior. A noite você pode ser sequestrado em
seu luxuoso quarto de hotel e levado a um porão, no qual será pendurado pelos
polegares, sem roupa, cercado por mulheres de 1,80m, musculosas como lutadoras
de MMA, sorrindo de modo lascivo, mascando chiclete, armadas com lâminas de
barbear cegas e enferrujadas para arrancar os pelos de seu corpo com a pele
junto.
O astro aperta o braço da poltrona com força,
instintivamente dando um sorriso amarelo e pedindo uma vodca dupla à comissária
de bordo. Estava apavorado. Sério, o empresário conclui:
- Não escutarão os seus gritos agonizantes pois todas
estarão com fones de ouvido, com sua música nova tocando bem alto em seus
ipods.
- Pode estar certo de que não esquecerei isso! Vou descer
desse avião com as mãos no bolso, não tiro nem para fazer xixi. Valha-me Deus!
- Bom para você, Morenão, bom para você... Mas não é só
isso. – a câmera do celular registrava a tudo. Tiques nervosos surgiam no rosto
do rapaz.
- Não?! PELAMORDEDEUS me diz que mais eu não posso fazer!
- Não pode sorrir. – a cara que ele fez foi impagável, mas
o empresário controlou o riso – Nesse país um meio sorriso pode ser tomado como
uma ameaça. Significa que você quer sodomizar as mães de políticos enquanto
eles são chicoteados por representantes das minorias, acorrentados pelos
tornozelos a pesados cofres de metal cheios de pedra em vez de dinheiro.
- Isso até seria
divertido de ver –diz ele, pensativo – O povo me adoraria por isso!
- Sim, mas antes que o povo lhe adore em vida, você
descobrirá no meio da noite que o seu colchão foi recheado com dinamite. De
início ouvirá um zumbido e depois as sensação de estar sendo arremessado ao
céu; mas antes que o alcance retornará ao quarto em forma de uma tempestade
sangrenta de gordura e entranhas. Terá que ser enterrado dentro de um liquidificador.
Ofegante e branco, o rapaz pega a vodca dupla e entorna de
um só gole, usando-a para engolir algumas pílulas para dor de cabeça junto com
algumas pílulas azuis e outras para controle de ansiedade e epilepsia.
- Nada de meio sorriso, então! – consegue dizer entre
crises de tosse, ficando quase roxo.
- Sorriso aberto muito menos, Morenão! – o empresário quase
não podia mais engolir o riso. Já tencionava vender o vídeo com a brincadeira
como item para fãs colecionadores de momentos íntimos do astro – O sorriso
aberto em público é um acinte ainda maior! – vendo o desespero instalar-se no
rosto de seu artista, branco como vômito de porco, com os lábios arroxeados e
trêmulos e o olhar vidrado, finge não notar e continua a explanação – O sorriso
largo e descontraído para esse povo equivale a dizer: “Vou usar as folhas de
seu livro sagrado para enrolar uns baseados, seus trouxas!”.
- Pela Nossa Senhora dos violinos quadrados! – ele se benze
da forma que pode, religioso que era, por medo e imposição dos pais.
- Se te pegarem sorrindo abertamente arrancarão o seu
escalpo com um facão de açougueiro e lhe farão engolir a própria cabeleira
cheia de gel. Enfiarão agulhas sob as suas unhas e lhe jogarão num cercado para
ser abusado sexualmente por uma centena de antas (o animal de maior pênis no
planeta) viciadas em crack.
Nesse ponto o cantor punkpira já não conseguia falar,
tomado pelo horror, dominado pelo terror, acachapado pelo medo. A mistura da
vodca com os remédios também já causavam estragos. Seu empresário, espertamente
gravando suas reações para a posteridade só pensava nos lucros. Programas de
pegadinhas com famosos... A comissária de bordo aproxima-se, e com aquele
sorriso de plástico profissional informa que chegaram.
O artista punkpira se levanta, com as duas mãos em torno do
próprio pescoço, ouvindo ao longe os sorrisos e palavras de incentivo de sua
entourage. Dá dois ou três passos em direção à saída e cai. Seu corpo de
contorce por alguns momentos e para. Estava morto.
Foi uma confusão dos diabos! Ambulância, tentativa de
reanimação, gritos, choro... Nada. Morreu mesmo.
Nas páginas dos principais jornais e revistas o motivo
alegado pelo empresário foi: morreu de infarto causado por medo de avião.
Marcelo
Gomes Melo
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Seu feedback é uma honra!