Miseráveis
atormentam idiotas II
Ela se soltou da minha
mão e foi para a pista sem dizer nada. Aceitou! Embriagado de alegria enlacei a
cintura de Jacyra e senti o bafo de mortadela na cara, de tão próximos. O
cheiro de mofo do moletom sem lavar impregnou minha mente. Dançamos as dez
vezes em que Juvêncio Preá repetiu a mesma música, cada vez mais íntimos. No
final da décima dança, suados e excitados, agarrei o seu rosto com as duas mãos
em garra e tasquei-lhe um beijo na boca, daqueles de língua com sabor
mortadela, cebola e cachaça. Naquela noite fomos para a minha casinha nova em
folha e a cama de campanha para solteiros que eu tinha rangeu a madrugada toda
como gatos no cio, as molas chorando embaixo de nós dois.
Jacyra era a flor do pântano que revigorou a minha vida! No
dia seguinte comprei uma cama de casal. Ela passou a receber uma mesada para o
cigarro e a cachaça. Comecei a comprar mortadela em peças para ela comer à
vontade e ensinei-a a tomar banho e escovar os dentes.
Toda noite, ao voltar do trabalho passava pelo buraco do
Inchado para pegá-la e irmos para casa juntos. O projeto era trazer à luz uns
filhos para alegrar a casa.
Jacyra engravidou três vezes, mas perdeu nas três por causa
da vida perdulária, dos vícios mortais, da falta de cuidado pessoal; ela não
estava nem aí. Quando tentei argumentar que ela deveria ter um comportamento
mais adequado para manter uma gravidez, uma atitude mais saudável em nome da
vida que se formava dentro dela, ou jamais teríamos crianças, ela se enfureceu.
Partiu para cima de mim com um porrete e quebrou a cozinha inteira! Eu fiquei
ali, em estado de choque, sem saber o que estava acontecendo. Depois disso
Jacyra sumiu por duas semanas sem dar sinal de vida. Nem no buraco do Inchado
ela apareceu.
Percorri hospitais, dei queixa na polícia, imprimi
panfletos e espalhei pela cidade sem obter resultado. No auge da dor, ela
reapareceu na nossa casinha. Antes que eu manifestasse a minha extrema alegria
por vê-la viva e aparentemente bem, me entregou uma carta de um advogado cujo
conteúdo não entendi muito, a não ser que pedia separação e que ela ficaria com
a casa e tudo o que houvesse dentro dela. Eu teria que sair imediatamente e sem
reclamar, ou iria para a cadeia. Mais uma vez fiquei branco, apalermado, sem
saber o que responder. Não entendia nada de leis, morria de medo da polícia e
tinha pesadelos com advogados, aquilo pra mim era uma sentença de morte!
Aquela degenerada a
quem salvei de corpo e alma me traiu sem hesitação! Há um motivo para que os
miseráveis sejam miseráveis eternamente! Eles sempre serão miseráveis sem
sentimentos, egoístas que se agarram à beirada do precipício que os leva ao
inferno até que algum imbecil, no caso eu, os venha a salvar. Então utilizam a
mão piedosa como impulso, salvam a si mesmos enquanto atiram-nos ao inferno sem
nenhum problema de consciência.
Jacyra era uma miserável. Eu era um idiota. Idiotas são
vítimas frequentes de miseráveis. Por mais que me esforçasse não sabia como me
vingar dela. Era o derrotado de sempre, condenado a lamentar pela eternidade.
O mundo evolui com catástrofes profundas, nas quais os
miseráveis sobrevivem e os idiotas são sacrificados, numa troca contínua de
modos de pensar, agir, viver e sobreviver. Populações inteiras deixam de
existir de uma hora para outra, para que o equilíbrio se mantenha e os mais
espertos continuem a viver. A natureza se recicla e o planeta permanece,
sempre, com as configurações geográficas modificadas, muitas vezes, mas com
novos seres para desfrutar das mudanças. E dentre eles sempre haverá miseráveis
gélidos para traçar e realizar o serviço sujo, e idiotas para sofrer as
consequências.
Eis que uma condição antinatural surgiu, uma única vez em
toda a minha vida para me favorecer. Sabe aqueles bilhetes de loteria em que eu
costumava apostar? Faturei milhões! Continuava um idiota, mas agora com o bolso
cheio!
Minha vingança não foi lá essas coisas; afinal um idiota
rico não vira uma miserável. Pelo contrário, adquire um sentimento de culpa por
estar rico e tenta ajudar a todos com quem convivia, para aliviar a pressão em
que se coloca naturalmente.
Eu comprei o quarteirão
inteiro, inclusive a minha antiga casinha roubada por ela, e mandei um bilhete
dizendo a ela para apagar as luzes e deixar a chave no batente da porta.
Meses depois ergui no
local um prédio bonito no qual passou a funcionar um prostíbulo.
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Boa noite Marcelo .
ResponderExcluirVocê se esmerou neste seu texto.
Não sabia quem estava mais atormentado se o autor ou a personagem miserável que atormentavam os idiotas.
Esse envolvimento de paixão e ódio num texto me alucina, pois gosto deste frenesi. Adorei do inicio o fim, pois você me prendeu pela força qual tinha de lutar pelos seus sentimentos. Simplesmente demais.
Agradecendo por compartilhar.
Abraços sempre.
ClaraSol.
Agradeço sua extrema gentileza,Clarasol, fico muito feliz que tenha gostado. A ideia é mesmo gerar essa empatia leitor/texto. Abraços! Valeu!
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