Idiotas,
vítimas frequentes dos miseráveis
Jacyra tomou meu carro,
minha casa, me mandou juntar minhas tralhas e “deitar o cabelo”, sem me
esquecer de apagar a luz e deixar a chave no batente da porta.
Justo aquela casa que eu conquistei com tanto esforço,
dormindo no trabalho para ganhar hora extra e me candidatar ao financiamento. À
época era solteiro, mas procurando desesperadamente por uma fêmea para
procriar, e como indivíduo planejador, lutava por uma residência própria,
pensando em dias melhores.
Agora fazia o caminho de volta para a pensão de
Nostradamus, carregando minhas trouxas, consciente de que todas as posses que
juntei em minha vida estavam perdidas. O esforço físico despendido, as energias
jamais seriam recuperadas; tudo estava acabado e sem volta, prejuízo total.
Deixei as minhas coisas na pensão e desci para espairecer,
aliviar o peso do nervosismo em minha mente apertada. Primeiro entrei em uma
lotérica para fazer o jogo de sempre, minha única chance de conquistar uma nova
casa. Em seguida voltei ao local em que tudo começou, o bar do Inchado, para
tomar uma cervejinha e relembrar os acontecimentos da minha vida.
O bar do Inchado era o
point do bairro, com sua mesa de bilhar, umas mesinhas descascadas e uma
televisão velha em um suporte na parede. As luzes fracas mal iluminavam o
lugar, que ficava parecendo uma caverna. Todos os fregueses se referiam ao
estabelecimento como “o buraco do Inchado”, coisa que o fazia praguejar com
ódio genuíno, exigindo respeito. Em vão.
Foi no buraco do Inchado que eu a conheci. A mulher
desalmada a quem resgatei da sarjeta; a figura nojenta e alquebrada pela vida a
quem puxei das profundezas dos infernos e trouxe à luz da vida honesta e
recatada dos cidadãos comuns, complacentes; a falsa e mal agradecida vadia que
usou a minha boa vontade para me esfaquear pelas costas, ficando com tudo o que
juntei com esforço, todo o espólio conquistado a duras penas.
Jacyra estava sempre lá, jogando baralho ou palitinho com
Zé Carvão, Turuna, Tanajura, Véio, Ramira... E tomava pinga tatuzinho comendo
mortadela, parecendo um urso panda com aquelas bolsas escuras ao redor dos
olhos. Usava sempre a mesma blusa de moletom surrada em cima do que fora um
vestido de formatura antigo, branco e cheio de rendas. Ou isso ou uma fantasia
de baiana no carnaval.
Eu ficava em um banco
alto de madeira junto ao balcão, com minha cerveja e um potinho de amendoins,
admirando aqueles cabelos ensebados, o rosto sem maquiagem e sem expressão, a
pele esverdeada parecendo um pergaminho. A voz enrouquecida pelos cigarros sem
filtro que fumava incessantemente, amarelando os dentes grandes e as pontas dos
dedos de unhas quebradas e maltratadas. Quando Jacyra sorria apertava os olhos,
e as rugas a faziam parecer uma sanfona. A boca encolhida lembrava uma uva
passa. Bebia meia dúzia de cervejas, isolado, e ia para a pensão Nostradamus
dormir pensando em Jacyra, a mulher dos meus sonhos.
Em uma sexta-feira à noite cheguei ao bar decidido a dar
rumo à minha triste vida. Estava feliz, com as chaves da minha residência no
bolso e um tesão incontrolável que nenhuma rainha da noite poderia saciar em
troca de duas notas de dez. Abalroei o meu corpo contra o balcão no lugar de
sempre e pedi ao Inchado uma cachaça, além da costumeira cerveja com amendoins.
Jamais havia trocado uma palavra sequer com Jacyra, mas estava decidido a ser
romântico e elegante naquela noite; disposto a conquistar o coração murcho
daquela bruxa a quem eu julgava uma santa.
Após a décima cerveja, e consequentemente a décima pinga,
eu já via o mundo rodar quando Juvêncio Preá, frequentador que estava
acompanhado por uma dama da noite chamada Silvina, que usava um vestido
vermelho da neta e uma rosa da mesma cor nos cabelos, se dirigiu à jukebox e
inseriu uma moeda, escolhendo uma música romântica, ideal para dançar naquele
chão de cimento no qual o Inchado, espertamente jogava talco, para facilitar
aos casais o deslizamento na pista de dança improvisada. Como em toda
sexta-feira, assim que alguém acionava a jukebox o Inchado acendia a lâmpada
vermelha, tirada de uma árvore de natal, para criar um clima. Isso aumentava as
vendas.
Nesse momento emborquei
o copo de cachaça e tomei a decisão. Em passos largos e incertos, cambaleei até
a mesa em que Jacyra jogava cartas. Segurei o seu braço com firmeza e a puxei
para cima, derrubando a cadeira com um estrondo, quase quebrando o braço dela,
que me olhou impassível, com aqueles olhos mortiços, dando um trago no cigarro
e soprando a fumaça na minha cara. Tentei resistir como macho e não tossir. Zé
Carvão, Ramira e Véio, que estavam à mesa jogando com ela, me olhavam
surpresos. Pareceu um grunhido para todos os presentes, mas foi a minha voz
saindo do fundo da garganta e perguntando a ela, “quer dançar”? Ela não
respondeu de imediato e eu pensei em me matar pela vergonha que iria passar...
Continua
Marcelo
Gomes Melo
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Seu feedback é uma honra!