Da
ironia das coisas (música para velórios)
Era linda, a danada.
Elogiada por toda a família desde bebê, deixava a mãe enlouquecida de
felicidade. A mamãe representava o tipo que, reprimido, não alcançara êxito em
realizar os próprios sonhos; casara cedo e logo tivera filhos, então elegera a
mais nova como a joia da coroa. Decidira realizar tudo o que não conseguira na
pele da filha maravilhosa e linda que tivera, e nada nem ninguém a impediria.
Desde pequena alardeava aos quatro ventos que a criança
seria bailarina. Na missa de domingo ficava com a menina, de mãos dadas em pé à
porta da igreja, com todos os dentes à mostra exibindo a filha como animalzinho,
toda inflada de orgulho com os elogios, até que o padre a tocava pra casa. O
marido nada dizia; de vez em quando a olhava de esguelha, fungava e voltava a
atenção aos seus afazeres.
A mãe sem noção logo decidiu que, além de bailarina, a filha
teria que ser pianista, obrigando-a a estudar desde muito cedo. A menina foi
crescendo sem direito a brincar como as outras crianças; a mãe a obrigando a
estudar canto, dança, piano e se apresentar nas quermesses da igreja, na escola
e em casa, para as visitas.
Logo passou a ser levada a programas de calouros, palanques
de candidatos políticos, concursos de misses... Com dezesseis anos fez o teste
do sofá para conseguir um lugar de figurante em uma novela. A mãe quase a doou
para o diretor de elencos, esperando que fosse um pequeno preço a pagar pela
fama.
Deu tudo errado. A
garota participou como figurante. No meio de umas das cem mil pessoas em um
massacre de um filme de época. A mãe mostrava a cena para todos, mas nem ela
conseguia enxergar a filha no meio do pó, do sangue e dos gritos daquela gente.
Isso não foi o pior. A filha da velha engravidou. Quando soube, o pai teve um
infarto. A mãe correu para o estúdio em busca do diretor de elencos, suposto
pai, mas o homem havia viajado para o Quirguistão sem plano de volta.
A moça, agora grávida, deixou aflorar o ódio que carregava
encubado desde pequena quando a mãe surgiu com umas ervas malditas e uma folha
de instruções de como agir para praticar o aborto. Com o pai internado, aproveitou
para colocar um plano em ação: colocou veneno de rato na comida da mãe e
livrou-se do tormento de toda uma vida.
Quando soube da morte da esposa, o pai deu um arremedo de
sorriso, um suspiro longo, e em seguida enfartou novamente, dessa vez foi
fatal. O seu último pensamento foi se iria encontrá-la no inferno ou ainda
teria chances no céu.
No velório dos pais ela cantou. Tocou piano e cantou. Todos
se emocionaram e aplaudiram tresloucadamente, no final. Ela fora a estrela do
velório. Todos os presentes se esqueceram dos mortos e passaram a homenageá-la,
pedindo até autógrafos. Nunca se sentira tão contente e confiante! Agora sim,
se achava uma estrela. Sozinha, esperando um bebê, mas uma estrela!
Ela teve que vender a casa dos pais para sustentar-se, e ao
filho, enquanto tentava conseguir emprego como artista. Nada. Tudo o que
conseguia era dançar em shows de forró universitário e fazer coreografia em
bailes de peão de boiadeiro em troca de cachês que variavam de meio a um
salário mínimo.
O menino foi crescendo
nesses ambientes, vendo a mãe desesperada em busca da fama, sem conseguir, e
prometeu a ela que seria famoso e rico para comprar uma mansão e viverem em
festa. Emocionada, comprou para o rapaz um tênis de basquete americano, uma
camiseta regata dois tamanhos maiores do que ele, uma calça de cintura baixa
tão larga que o fazia desaparecer dentro dela e ficava caindo, deixando a cueca
à mostra. Para completar, uns óculos escuros e garoto sentiu-se pronto para
tentar a vida como rapper.
O que a mãe não contava é que nesse caminho o garoto se
envolveu com gangues, adquiriu vício em drogas e virou assaltante, batedor de
carteiras, político principiante. Alucinado, o garoto roubou todas as economias
da mãe, que eram para colocar silicone e aplicar botox. Gastou tudo com drogas
e, vítima de overdose, morreu.
Novamente apavorada, ela se culpava pela morte do filho,
achando que era castigo por ter assassinado a própria mãe. Agora, em plena meia
idade, sem ter alcançado sucesso algum decidira enterrar o filho e trabalhar
como garçonete ou auxiliar de limpeza. O sucesso não era para todos, ficara
óbvio finalmente.
O enterro do filho foi tão lindo quanto o dos pais. Ela
resolveu cantar pela última vez em homenagem ao filho. E o fez de maneira
brilhante, misturando guaranias com rimas de rap, música sacra com sertanejo,
forró com funk carioca. Foi uma apresentação fenomenal! Um dos amigos do filho
morto gravou a tudo no celular; as pessoas chorando, aplaudindo, dançando... Na
hora do reggae caipira até acenderam cigarros de maconha. Era o enterro que
entraria para a história!
O vídeo postado no youtube
tornou-se viral, e a mãe do morto, ainda de vestido preto e com a maquiagem
borrada foi contactada pelo diretor de uma gravadora internacional com a oferta
para lançar imediatamente um disco chamado “Até os mortos dançam”. Ao chegar em
casa o telefone tocou. Um convite para estrelar a novela das onze da noite “O
defunto palrador”. E empresas funerárias aos montes oferecendo cachês de seis
dígitos para que ela se apresentasse em velórios de famosos, com vídeo clipe e
divulgação.
A outrora menina prodígio da mãe, assassina problemática e
sem sorte agora era capa de revistas de celebridades, com seu vestido roxo
agarradinho combinando com a Ferrari da mesma cor; saiu nua em revistas
masculinas com poses fantásticas em cemitérios. Gravou vídeos para a internet
nos quais saía nua de um caixão, com o corpo coberto por mel de abelhas,
cantando o hit do momento “veneno de mãe”.
Esse caso fantástico
foi eternizado em uma autobiografia intitulada “Da tragédia à glória”. Em seu
túmulo nas profundezas dos infernos, a mãe dela se revirava, tentando mostrar
os dentes de felicidade para o capeta.
Marcelo Gomes Melo
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirGoste muito de seu blog e estou te seguindo no google conect se quiser visite o meu blog http://detudoumpoucoapouco.blogspot.com.br/ e retribua.
ResponderExcluirValeu, Eduardo, a honra será minha!
ResponderExcluirCaraca isso prova que quem espera sempre alcança mesmo kkkk
ResponderExcluirBom muito bom.
Show de bola.