Simone,
o jantar está queimando, não seja teimosa e não fique falando sei lá com quem
através desse maldito aplicativo que é a única forma para saber das pessoas e
se sentir vivo, embora preso. Você deveria largar um momento e salvar nosso
meio de nos manter vivos mais tempo, que é nos alimentando. E se a comida tiver
algum sabor, melhor.
Eu?
Já li alguns livros, vi a TV nos canais jornalísticos, briguei com a maneira
cínica com que distorcem as informações em próprio benefício, mudei para o
canal de esportes que, sem ter do que falar torna claro a incompetência da
imensa maioria deles, mentirosos, fanáticos, incultos e ineficientes. Tento com
certeza alguma música de qualidade, obviamente antigas para conter a ansiedade.
Funciona por algum tempo. Quando fico cansado olho através da janela e o sol me
cega os olhos, desacostumados da luz natural. E isso me lembra do jantar.
Simone, largue o smartphone e termine o jantar, por favor!
Logo
mergulharei na profundidade escura dos oceanos da internet, descobrindo coisas,
me horrorizando com outras, distraído com memes, contando a enormidade de
golpes cruéis contra os mais inocentes, inabilitados a lidar com as
ferramentas, caindo em situações que os levarão à miséria física, mental e
financeira. Verei amores virtuais verdadeiros durar por décadas, e ao sair para
além das máquinas morrer por serem absolutamente falsos, baseados em fantasias
de quem acreditava no que contava que era, mas estava longe de ser real.
A
máquina controlando o criador, comendo pelas beiradas e modificando o modo como
a nossa geração costumava viver, Simone, livres, lá fora sob o sol e chuva,
sorrindo, trocando abraços e xingamentos, correndo contra o tempo, mas sobrevivendo
através das próprias forças e decidindo pelos próprios erros e acertos, sem
comando central proibindo-nos de viver, aumentando as nossas chances de falar,
profissional e amorosamente, porque não se importam com seres humanos comuns,
julgam-se acima deles com seus objetos pessoais sem preço e iguarias jamais
conhecidas. A forma dos genocidas, psicopatas e sociopatas está funcionando
muito bem e está protegida, então doenças invisíveis surgem do nada, intimidam,
matam e seguem agindo, sem cura, estranhamente poupando aos que habitam o topo
da pirâmide e os que fazem o trabalho sujo para criar colapso. O samba do
crioulo doido está montado, há macacos armados com metralhadoras disparando a
esmo e cegos brigando de foice no escuro à beira do barranco.
Simone,
coloque essa máquina para carregar e venha sentar-se à mesa comigo, comer,
brindar com uma taça de vinho e trocar algumas palavras gentis. Preciso ouvir o
som de sua voz, e também o da minha dizendo o quão maravilhosa você é, e que
sairemos dessa em breve; primeiro resistindo às doenças que o confinamento
traz; depois superando com anticorpos a morte que esse vírus, natural ou de
laboratório traz. Por fim, lutando contra os insensíveis que colocam os
próprios propósitos acima do bem comum coletivo, dispostos a tudo para manter
os benefícios, mesmo perdendo a humanidade no processo, remoldando a raça para
algo inconcebível, predadores que em pouco tempo tentarão estender o domínio
pelo universo, pois confiam mais em si mesmos do que em Deus.
Marcelo
Gomes Melo
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