De como os mistérios são criados
Eu
irei profanar a sua tumba na madrugada chuvosa. Com as ferramentas apropriadas
invadirei o cemitério particular de sua propriedade, com lama até os
tornozelos, relâmpagos cortando o céu, furiosos, e trovões ribombando
impiedosamente, me ensurdecendo a cada passo mais próximo do túmulo cinzento,
quase que soterrado pela erva daninha, beneficiada pela água da chuva para
tomar posse do terreno que, post mortem, lhe cabe nesse latifúndio.
A minha pá de aço não encontrará
dificuldades contra a terra molhada, afastando-a do caminho, atirando-a para os
lados até desnudar o caixão de madeira boa, pintada de roxo. Nem precisava usar
as minhas luvas de couro para proteger as mãos de calos indesejáveis.
Da sacola dos meus pertences puxo um
pé-de-cabra eficiente, fincando a pá ao lado do buraco negro, última morada na
qual penetro com simplicidade. À luz dos relâmpagos e com os olhos ardendo
pelos pingos de chuva estupro a fechadura que mantinha o caixão lacrado,
escancarado a tampa ao mesmo tempo em que um trovão explodia assustadoramente;
se como reprovação ou alegria, não sei...
O próximo passo foi observar,
impassível, o seu corpo gélido, a pele branca coberta por diáfana seda branca,
o que lhe dava uma aparência de tranquilidade universal.
A beleza infinita e imóvel que só os
conectados com a morte apresentam me deixou sem fôlego. Cuidadosamente abri os
seus aveludados olhos, e encontrei um tom violeta claro, vazio, inútil.
Saindo
do buraco remexi a sacola, tirando alguns apetrechos importantes, necessários
para o meu trabalho de coleta que resultaria em sua imortalização.
Empunhando uma tesoura de cortar
frango assado e uma embalagem plástica a vácuo retornei à cova, me posicionando
confortavelmente no meio da lama pegajosa, a antítese de sua beleza imaculada,
banhada por água e raios.
Eu cortei as suas orelhas
cuidadosamente, ensacando com carinho e colocando a salvo em um compartimento
da sacola. Você fica maravilhosa sem orelhas! Nova trovoada, dessa vez de
aprovação total, tenho certeza!
Agora empunho um bisturi, e talho um
enorme X em sua testa. Nada de
sangue, é claro, o que eu esperava? Delicadamente extirpei os seus globos
oculares, repetindo o procedimento de embalá-los a vácuo. Cautelosamente me
apoiei no caixão para delinear seus lindos lábios com o bisturi, extraindo com
precisão.
Logo amanheceria, então o meu trabalho
tinha que ser mais veloz e preciso do que artístico. Um alicate para os dentes
e unhas entrou em ação; um cortador de charutos para os dedos dos pés e das
mãos; machadinha, saca-rolhas e ganchos ajudaram e muito!
A chuva diminuíra bastante e a luz do
dia ameaçava surgir quando cheguei ao meu porão e espalhei os seus órgãos nos respectivos
recipientes, enfeitando as prateleiras. Mais tarde as etiquetarei com preciosismo
e arte.
Agora um banho quente, e, no desjejum
ler o jornal tranquilamente, saboreando a manchete acompanhada de foto
aterrorizante e uma pergunta que instigará medo e curiosidade: “Descoberta vida
extraterrestre?”.
Marcelo Gomes Melo
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