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Frases entalhadas; paixões inúteis.



          Estava quieto fitando o copo de pinga metade vazio, hipnotizado, com cenho franzido, as mãos crispadas em torno do objeto não voador identificado modelo americano. Tratava-se de um filósofo do povo afogado pelas suas ondas gigantescas de problemas e horror. Migalhas de pão com mortadela grudavam em seus antebraços encostados na mesa antiga de madeira com nomes e datas entalhados à canivete por tantas outras pessoas antes dele.
          Alheio ao mundo em seu redor, olhos esgazeados e avermelhados, sentia-se derrotado, e isso triplicava o seu ódio pela incapacidade dele próprio de manter as coisas sob o seu controle. Estendeu a mão esquerda sobre a mesa, alargando os dedos, deixando-os separados. Puxou da cintura uma faca peixeira de quarenta centímetros, afiada como a língua de sua saudosa sogra fofoqueira, que o diabo a tenha carregado.
          A loucura era individual, sempre; os outros não enxergavam com clareza a verdade das coisas. Não havia milhares de loucos, mas loucos pontuais, e esses eram sacrificados por pensar diferente, por pensar fora da caixa, coisa que só os homens de negócios modernos aceitavam e promoviam, imitando a forma americana de agir.
          Emborcou o restante da branquela azeda de uma vez, fazendo uma leve careta e imediatamente um sinal ao dono do bar solicitando outra dose pura de “rala sogra piranha”. Empunhando com firmeza gelatinosa a enorme e poderosa faca, começou a golpear entre os dedos, tirando finas da carne, sem espetar nenhum dos dedos, por enquanto. Quando a cachaça chegou desconcentrou-se por segundos e cortou o lado interno de um dos dedos, que começou a sangrar na mesa sobre um dos nomes entalhados há anos.



          O dono não se manifestou. Pareceu nem perceber o corte no dedo do tabaréu. Serviu a pinga, enchendo o copo até à boca e limpou a mão no avental, afastando-se. Deixando a mão estendida, os dedos entreabertos, ele largou a faca e segurou o copo com mais firmeza e decisão. Cheirou a pinga como um conhecedor. Inspirou como se fosse o perfume de um cangote feminino, enquanto o sangue continuava a pingar pacientemente do dedo cortado, preenchendo os sulcos da palavra entalhada. Fechou os olhos como se fizesse um pedido ou até uma rápida oração e entornou metade da cachaça.
          Olhos, orelhas e maçãs do rosto totalmente vermelhos, os lábios em um curva descendente astronômica e as rugas ao lado dos olhos, que já tinham deixado de ser pés de galinha e viraram pés de peru de tão proeminentes o faziam parecer uma máscara mortuária. Depositou o copo ao lado da faca e passou a observá-los, tentando determinar qual era mais importante para um ser humano como ele: o líquido entorpecedor de mentes ou o elemento doutrinador de bestas humanas.
          Os olhos se apertaram em direção a ponto nenhum e os dentes se trincaram, relembrando detalhes desagradáveis da derrota. Se tivesse uma bomba...
          Respirou fundo e secou ao néctar transparente que restava no copo sem pestanejar. Do fundo de sua garganta um bramido rouco e breve. Levantou a mão e pediu outra dose. Enquanto a esperava retomou a faca e reiniciou o jogo, fincando a lâmina entre os próprios dedos em velocidade cada vez maior. Outros erros leves e novos cortes pequenos em outros dedos. Mais sangue derramado.



          A palavra entalhada, a essa altura já estava completamente preenchida com sangue. Aliás, uma frase estava preenchida com o seu sangue impuro no tampo da velha mesa de madeira. Ele a leria, se o soubesse. Mas não sabia. Não conhecia filósofos antigos, nem modernos. A vida era dura e ilógica para ele de maneira empírica. Nova dose.
          Na mesa, a frase ensanguentada destacava-se para ninguém: * “O ser humano é uma paixão inútil”.
                                                                                  

                                                                                                *Jean Paul Sartre




Marcelo Gomes Melo



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