Amaldiçoando
o ano novo
Ele decidiu uma vez que
todas as novidades causam uma sequência de coisas: primeiro o medo do
desconhecido, a tensão causada pela insegurança; em seguida a adrenalina quase
feroz da decisão, a imposição da vontade sobre o medo; o ardor da descoberta
vem depois. A delícia da utilização, o surgimento de novos parâmetros, a
vitória sobre a mesmice rotineira...
As novidades causam furor e exercem a falsa ilusão de
felicidade eterna, mas desgasta-se. Acontece não por ela em si mesma, mas pela
sede que causa em seus caçadores. Os novidadeiros não conseguem manter o foco
por tempo suficiente para desfrutar completamente, porque é um vício imediato,
que satisfaz tempo suficiente para ser descartado em nome de novas doses de
adrenalina e medo, coragem e satisfação finita.
O ano novo, dentro do que ele podia enxergar era assim. Ilusão
imediata para quem deseja corrigir falhas, chance de evolução pessoal e
profissional, até mudança no campo amoroso, por que não? Mas ele era um
opositor atroz ao modo como o ano novo era vendido. Não se descarta amores
antigos, perpétuos; não se modifica situações cronológicas apenas com o gesto
simbólico envolto em fogos de artifício.
Ele quis firmar em si mesmo a convicção de que era uma
ilha. Sim, uma ilha a ser habitada por todos os que compartilhassem suas
ideias, os seus temores e capacidades, só assim seria possível chegar à
felicidade. Só assim a ilha se conectaria aos continentes da alma e realizariam
projetos verdadeiros, centrados na realidade e não em promessas tão necessárias
quanto ópio para carneiros.
Então se recusou a beber e a olhar o relógio. Não respondeu
às felicitações e não felicitou. Não sorriu para o ano que viria. Não
cumprimentou as paredes e vetou seus ouvidos às canções populares sem sentido e
à visão dos fantasmas de branco com sorrisos atoleimados e ridiculamente
inseridos ao ambiente colorido, às conversas fúteis e ao vazio iminente.
A vida tinha que ir
além dos modismos. O mundo tinha que acolher os seus inquilinos de modo
igualitário, no que concerne a divisão de ar puro, água potável e soluções
diagnósticas benéficas. A hipocrisia tinha que ser menos do que acessório de
fábrica. Talvez extirpada para sempre dos meios humanos, já que não existe no
meio animal, de forma alguma.
Ele queria novas sensações, como qualquer outro ser humano,
mas preferia as sensações renováveis, como amor para sempre em cápsulas
imaginárias na corrente sanguínea, refazendo momentos maravilhosos e
oportunizando correções de rota, transformando desconfiança em mero ciúme e
mantendo as marcas das fases tristes como experiência eterna, para resistir
mais e suplantar sempre.
Não há ano novo, chegou à conclusão. Não existem listas
novas do que fazer para melhorar; não é possível recomeçar do zero sem carregar
as cicatrizes, nem todos são bonecos de plástico, só os que têm dinheiro e
disposição para sê-lo. É importante se conscientizar disso para transpor as
linhas invisíveis, soltar as amarras suaves que acorrentam o cérebro e soltar o
urro silencioso dos inconformados sem alterar o rumo constante dos inertes. Os
zumbis barulhentos das convenções sociais devem seguir seu rumo circular,
inacabável, até que os que rompam as linhas sejam maioria, aí a coisa será
diferente. E o ano deixará de ser novo para ser mais.
O mundo comemoraria então um ano mais. Mais pleno, mais
justo, mais, civilizado, mais pacífico, mais bem conservado, mais feliz...
Depois de decidir, ele bateu a poeira do jeans com certa
força, colocou seus óculos escuros e seguiu em frente, sem saber o que havia à
frente.
Marcelo
Gomes Melo
Superou-se então.....
ResponderExcluirQue 2015 seja de superação a todos e todos os dias.
Beijão Marcelo.
Desejo-lhe o mesmo, porque é disso que precisamos para que o mundo continue a funcionar, aos trancos e barrancos. rs Valeu!
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