Século XXVI: matadouro das boas almas
-
Eu nunca matei ninguém.
- O quê?! Você é louco, cara?! Como
assim nunca matou ninguém? Quantos anos você tem?!
- 43.
- 43? Quarenta e três?! Então você
nasceu sob o signo da grande guerra, maldade e confusão! Como vem aqui me
dizer, oficialmente, que jamais matou alguém?! Não tem consciência do perigo?!
- Eu...
- Você não pode dizer isso em voz alta
por aí em sã consciência! Como sobreviveu até essa idade sem matar alguém?!
- Bom... Nunca matei. Ninguém.
- Meu rapaz! Diga-me, e pense muito
bem antes de me dizer... a sua situação aqui está horripilante e eu estou
tentando lhe ajudar, está entendendo?
- Sim...
- Você já bateu nos seus irmãos?
Quebrou o braço de alguns deles? Colocou pimenta na sopa da sua mãe...
- Não que eu me lembre... Por que eu
faria isso?!
- Por... Você é retardado, imbecil?!
Não percebe em que sociedade vivemos? Nunca martelou os dedos do seu pai
fingindo que foi acidente?
- Não, senhor, eu sinto muito.
-
Na escola! Já agrediu professores, roubou o lanche dos colegas mais novos, foi
expulso e mandado para Instituições próprias a infratores juvenis? Todos na sua
faixa etária têm isso no currículo hoje em dia!
- Não...
- Você é casado? Já espancou a esposa,
torturou os filhos, dilacerou a garganta da sogra com uma garrafa quebrada?
- A minha sogra...
- Opa! O que temos aqui... O que fez
com a maldita sogra, meu bom cidadão, conte!
- Deixei de enviar cartão de natal
para ela, foi uma demonstração clara de que estava magoado.
- Desgraçado idiota! Você tem noção de
que poderá sair daqui direto para a cadeia por falta de atitude radical? Se
continuar assim não posso lhe contratar! Como vai sustentar a família?
Demonstrar o mínimo de maldade para ser considerado um cidadão modelo para a
sociedade. Ajude-me a lhe ajudar!
- Eu...
- Matou animais? Gatos, cachorros...
Mesmo galinhas, porcos... Sujou as mãos de sangue de alguma vez?!
- Uma vez... Não, era outra coisa, não
envolveu violência.
- Sinceramente, meu filho, você não poderá
viver em sociedade com essa falta de violência. Você é um inútil social! Já
assaltou frutas na feira? Escondeu produtos na roupa e saiu do mercado sem
pagar? Saqueou caminhões tombados na estrada? Nada! O que tem a argumentar em
seu favor?
-
Eu... Fui mal preparado por minha família.
- Isso! Fale alguma coisa em seu
favor, culpe a algum idiota!
- Fui à escola para aprender. Em casa
cresci respeitando a todos. Jamais fui grosseiro e desrespeitoso. Aprendi a
usar a caneta e a voz. Sei cantar, sei ler palavras de boa vontade em voz alta.
Estou acostumado a ajudar e apoiar a quem precisa. Não roubo, não engano, não
prejudico a ninguém. Eu sinto muito.
- Não sabe usar armas brancas? Nem
pratica qualquer arte marcial? Consegue atirar com garruchas, usar pedaços de
pau e pedras para agredir e machucar?
- Eu...
- Eu sei, eu sei, você sente muito.
Quem sente muito sou eu. Não posso lhe dar o emprego. Você teria que arrancar
as unhas de aposentados que não pagam as contas e eliminar a quem não tem
dívidas por mais de um mês.
- Mas...
- Eu sinto muito. Podem levar! Direto
para o matadouro das boas almas. Próximo!
Marcelo Gomes Melo
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