Vilipendiando Jack
Conseguir
a entrada no hospital foi fácil. Dali em diante foi preciso mais habilidade e
charme para convencer a enfermeira de que era parente do paciente e entrar no
quarto sozinho, levando um buquê de margaridas com um porrete escondido entre
as flores.
A vingança era um prato que se comia
frio. No caso dele já era sorvete, de tão gelado! Era a sua hora! Terno risca
de giz, chapéu e charuto apagado na boca era o seu ideal estético para realizar
maldades em geral, desde terminar o namoro até esmagar a cara de Jack sem
piedade.
Ao entrar no quarto fechou
cuidadosamente a porta e as cortinas. Manteve acesas apenas as luzes ao lado da
cama, de modo que a escuridão o envolveu quase que por completo.
De seu ângulo de visão, Jack, rosto
abatido, olhos quase fechados, soro pendurado em um tripé ao lado... O horror
dos maus pensamentos enrugam a sua testa e os lábios se arreganham mostrando os
dentes como um animal prestes a atacar.
Surge em sua mente a adolescência,
quando era passado para trás por Jack nas mínimas coisas: estudava e entregava
a cola, mas se era flagrado sempre levava a pior; ficava com a culpa e Jack com
as honras.
Foi nessa época escolar que colecionou
todo o tipo de tiques nervosos, inclusive esse que permanece até hoje e
consiste em um ricto no músculo esquerdo da face, incontrolável, puxando três
vezes enquanto o olho esquerdo sobe deixando à mostra apenas a parte branca. Ao
mesmo tempo o ombro direito sobe e desce uma vez, tornando a figura dele
ridícula. Bufa de ódio, isso era culpa de Jack, que estava ali à sua frente em
uma cama de hospital, recebendo soro e remédios, mexendo apenas os olhinhos
inquietos, ironicamente. Mesmo naquele estado ainda zombava dele.
Aqueles
momentos saboreando a vingança eram maravilhosos! Poderia usar o travesseiro e
matar por asfixia; poderia desligar os aparelhos e observar os estertores
finais com imenso prazer. Poderia, como não, usar o porrete que trouxera entre
as flores para transformar aquele rosto em massa de tomate, eliminando a
expressão que tanto o torturava de uma vez por todas.
Tirou o chapéu e se aproximou para ver
aqueles cabelos longos de outrora tão bonitos, amarelos, agora maltratados e
sem vida. Não havia produto Jequiti que os melhorassem.
Olhar assim de tão perto o colocava
nervoso, e os tiques atingiam velocidades horripilantes: e era olho para cima,
boca para o lado, ombro para a frente, tudo ao mesmo tempo. O suor cobria-lhe a
testa.
Eles se formaram juntos, ele como o
primeiro da classe e Jack, graças à cola, em segundo, mas, é claro, na hora do
emprego bom fora passado para trás e perdera a vaga porque Jack o induzira a um
encontro em um motel caro à mesma hora em que aconteceria a entrevista com a
multinacional. Resultado: ele ficara lá, sozinho no motel, esperando, enquanto
Jack o substituíra e ganhara o emprego. Chapéu de trouxa é marreta!
Jack. Todos a chamavam de Jackie.
Jackeline, a malvada do catupiry, atacava pelas bordas, fazendo os tolos pagar
caro. Ele a chamava de Jack, por causa de sua predileção pelo uísque em grandes
quantidades.
Jack o fizera pegar um alto empréstimo
para abrir um negócio em sociedade,
pegara todo o dinheiro e sumira para um paraíso fiscal, largando-o com todas as
dívidas e prisão por dez anos. Os mesmos dez anos que passara na cadeia ouvindo
Legião Urbana sem parar: “violência e estupro do seu corpo, você vai ver eu vou
te pegar”.
Agora
estava ali, fora da cana, pronto para cobrar as mazelas sofridas. Soubera do
acidente que vitimara Jack e a levara àquele leito de hospital. Excesso de
uísque e pó. Ouvira que estava paralisada do pescoço para baixo, só movia os
olhos terríveis. Não estava falando. A boca de lábios finos permanecia com um
sorriso metade Coringa, metade Mona Lisa; o lençol tapava um corpo outrora
invejável. Parecia uma minhoca enorme, ali estirada, sem estrutura óssea. Esse
pensamento o fez sorrir alto, aos soluços, por um momento. Estava pior do que
ele, Jack.
Sem mais delongas puxou o porrete do
meio do buquê e segurou-o firme com as duas mãos. Teria a justiça finalmente!
Estava por cima literalmente e dessa vez não tinha como ser enganado. Deu dois
passos em direção à cama e ergueu o porrete acima da própria cabeça,
deliciando-se com a hora da vingança.
Qual não foi a sua surpresa enquanto
descia os braços pronto para a primeira das porretadas fatais quando, por baixo
dos lençóis apareceu a ponta de uma arma calibre doze, na mão direita de Jack.
Dois tiros à queima roupa lhe
explodiram o peito. Com os olhos arregalados, largou o porrete e notou a massa
de tomate se espalhar pelo quarto branco. Surpreendido pela derradeira vez, viu
que não era páreo para Jack.
Em seu último suspiro, surgiu claramente
a moral da história: “Quem nasce para pinto jamais se tornará frango”.
Marcelo
Gomes Melo
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