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 É assim que são forjadas as almas mais fortes?



          Em janeiro recusei, disse que não iria nem a pau porque era muito caro. Onde já se viu! Um roubo daqueles desgraçados que vivem para dissecar as pessoas, vertendo dinheiro para o próprio bolso às custas do último naco de carne arrancado do osso. Não vou, não vou e não vou! E não fui.
          Isso gerou um tremendo mal estar porque ela retrucou, ameaçou, chiou, regulou, fez greve e maldisse a mim e à minha centésima geração a partir dali. Dias de muxoxos, cara feia, refeições fast food e ironias contra a minha impávida figura. Mas não fui. Venci ao sistema.
          Em fevereiro brinquei, fiz cena, argumentei matematicamente, difamei, proibi e fiquei. Sozinho. Todos os outros foram. Mesmo assim, ignorado e atropelado fiquei para trás. Não fui corrompido.
         Em março e abril chutei lata, briguei, citei analistas econômicos, excomunguei políticos, religiosos e comerciantes, culpei os illuminati, previ o final do mundo, assustei até aos animais de estimação e consegui barrar o êxodo. Isso me custou algumas regalias, uns investimentos em presentes para acalmar a fúria coletiva, mas permaneci firme por aqui.
          Maio, junho e julho foram meses de tensão contra mim. Fui encostado contra a parede, com uma faca no pescoço. Luzes fortes de um abajur em meus olhos, privação do sono, axé music, pagode, funk e tomateiro caipira songs em alto volume me torturaram dia e noite, até que, diagnosticado com esgotamento nervoso tive um tempo de paz na UTI de um hospital grandioso; escapando da morte fiquei à base de gelatina e sopa sem sal por mais uns tempos, então não pude mesmo ir, e me deixaram em paz, mesmo que condicionassem a minha melhora à ida para aqueles locais aos quais eu ainda resistia.



          Agosto, mês de cachorro louco, foi mais fácil para assombrar a todos e tive um bom motivo para ficar. Setembro e outubro foram meses em que apelei à superstição alheia, contando e recontando casos de abdução alienígena, profecias para o final dos tempos e a periculosidade do ser humano em estradas, armados com seus carros velozes e ausência total de escrúpulos. Fiquei sorrindo como o coringa e apertando as mãos, cantando vitória sentado em uma cadeira de balanço num canto escuro da sala, como um vilão de história em quadrinhos. Não fui a lugar algum. Estava goleando os guias turísticos e agências de viagem; massacrando a economia corrupta de lugares paradisíacos e mantendo a mim mesmo afastado do assalto teleguiado que nos torna miseráveis sem que percebamos. Eu percebia! Os meus olhos não perdiam nada, movendo-se ansiosamente de um lado para o outro, observando as mudanças naturais, geográficas e até emocionais ao meu redor. O meu sorriso era um artigo raro e só aparecia para brindar a mim mesmo, saindo meio retorcido, parecendo mais um tipo de choro angustiado do que uma demonstração de felicidade.
          Em novembro os dias se tornaram mais longos e o cansaço caiu sobre os meus ombros como um caminhão de melancia. Já não tinha forças para argumentar contra o malfadado sistema que carregava humanos para a rampa engraxada em direção às profundezas dos infernos coloridos e abundantes em opções de todos os tipos. Era eu quem estava apagando, murchando como uma flor a quem negaram água pura, me autodestruindo como um viciado com as faculdades mentais corroídas pelas drogas.



          Agora é dezembro, fim de ano, período de tristeza e depressão, balanço individual de vidas vazias que nada fizeram a não ser se curvar aos atrativos empurrados garganta abaixo para comandá-los mais facilmente e dominá-los completamente. Dezembro é período de meditação e de bondade suprema, pagamento dos pecados anuais e novas promessas para o próximo ano. Os pecadores fingem que se importam e os que se julgam santos fingem que acreditam no que vendem; os que são como eu, resistentes, escravos, desconhecedores do poder da resiliência, o que fazem? Morrem mais um pouco, da mesma forma que o fazem mês após mês?

             Eu não, canastrão! Eu não! Acabo de decidir me rebelar contra mim mesmo. Tudo o que deixei de fazer com os que me amavam durante o ano, tentarei recuperar agora, nos dois últimos dias do ano. Vou beber a viagem de janeiro às dunas maravilhosas; encharcarei os dias perdidos de carnaval em um local maravilhoso, em que poderia ter pescado e vivido. Comerei cachaça com farinha para os meses de março e abril, sorvendo prazer a cada gole em que poderia ter estão com todos numa praia iluminada e deliciosa, expurgando o cansaço e a tensão. Para maio, junho e julho, champagne, cerveja, vodca aos montes! Só o coma alcoólico me deterá! Em recuperação a agosto, setembro e outubro, tragam-me uísque, Martini, caipirinha! Para novembro todas as batidas calientes, pisco, tequila e saquê.
             Para dezembro, com a voz engrolada, a pressão nas alturas e o coração batendo lentamente, ouçam as instruções finais! Injetem álcool e gasolina no soro, assim que eu estiver acomodado em meu leito de transição, no hospital, cercado de fantasmas de branco, esperando a carruagem escura que me guiará até o aterro, meu apartamento final. Sob a terra molhada estarei tranquilo pela tentativa desesperada de recuperar uma vida em dois dias por meio do álcool. Festejem o dia do meu esclarecimento final! Não sou mais quem eu fui, sou outro. Superei a mim mesmo e às convicções turvas que me carregaram por uma vida quase que inteira, se tirarmos os últimos dois dias. É assim que se forjam os fortes? Ou que os trouxas se deixam levar às mortes?



Marcelo Gomes Melo


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