Os desastres do amor verdadeiro
Primeiro
beijo: à beira da avenida, no barranco que dava vista para o rio doce. Uma
ladeira repleta de árvores lendárias enraizadas em terreno fofo e lamacento,
escorregadio como quiabo ensaboado. Lá embaixo podia-se enxergar o rio doce, de
águas tranquilas e frias, fazendo o seu caminho imutável até a cachoeira dos
amores perdidos.
Quase um metro e noventa de bobeira e
gentileza, vestido com seu paletó preto e chapéu de abas retas, o sapatão
engraxado tamanho 50 em que era possível refletir a si mesmo. A menina pequena
e esperta, de rabo de cavalo e uma libido estratosférica segurando seu pescoço,
apoiando-se sobre os seus pezões puxava-o para baixo em direção à sua boca
macia e convidativa, curvando-o como a um arco. Completamente desastrado
enlaçou aquela cinturinha com sua mão enorme, cobrindo o seu bumbum com a
outra, tirando-a do chão para um passeio ao paraíso naquele beijo desesperado.
A menina não era de brincadeira,
parecia estar a pão e água por anos a fio, e forçava o seu pescoço comprido
para baixo ao mesmo tempo em que jogava as pernas em torno de sua cintura e
deixava o corpo não muito pesado deslocar o centro de equilíbrio do grandão,
emocionado e excitado como jamais estivera em sua triste vida!
Os carros que passavam a mais de cem
por hora buzinavam significativamente, e foi isso o que terminou por fazê-lo
escorregar, como era de praxe, visto que era o desastre em pessoa, e ainda
naquela situação celestial. O pezão calçado com os sapatos de sola lisa não
resistiu e os jogou pirambeira abaixo, misturando-os à lama e detritos de
folhas e galhos apodrecidos.
Eles
não se largaram e nem separaram o primeiro beijo. Eram realmente cascas-grossas
do amor, e se embolaram barranco abaixo até encontrar a margem do rio doce,
lavando o beijo como se fosse uma bênção. Não se importaram. Ela sorriu
bastante, sem parar de beija-lo e afastar os longos cabelos molhados dele, já
que o chapéu ficara soterrado em lama; ele fez uma careta que parecia ser de
felicidade, e era, mas também de dor, pois torcera o tornozelo e fraturara uma
costela na queda livre, feliz por ter conseguido protegê-la de qualquer dano.
Subiram como puderam, ela sem sapatos,
ele com quilos de lama encobrindo os dele, parecendo calçar dois blocos de
granito, com dificuldade para respirar e andar. Cambaleante e escondendo a dor,
abraçado a ela como o seu cajado salvador, alcançaram a avenida e uma carona na
boleia de um caminhão até o hospital, que não era longe.
Diagnóstico do primeiro beijo: algumas
costelas quebradas, sapatão engraxado perdido, tornozelo fraturado, um mês
engessado, tomando sopa de canudinho, que ela carinhosamente fazia questão de
lhe dar. A pequena danada não sofrera sequer um arranhão. E o grandão se
julgava o ser humano mais sortudo da face da terra, pois a tinha beijado e isso
significava que o amor era recíproco.
Durante os quase quarenta dias de
cama, eles se conheceram melhor, sorriram juntos, mesmo que isso causasse
imensa dor a ele. Falaram sobre as comidas preferidas de cada um, do que
gostariam de cursar em breve na universidade, o tipo de música que os
satisfazia... E em tudo isso combinavam totalmente.
Eis
que ele teve alta justamente na semana do baile de formatura, então saíram
juntos para escolher um novo sapato, um blazer “da hora” e transformá-lo em um
par perfeito para a garotinha linda e alegre, a mais popular do colégio.
Ele quase desmaiou de júbilo quando a
viu naquele belíssimo e sexy vestido vermelho que combinava com os cabelos
louros amarrados com perfeição displicente. Era a joia do baile! E estava com
ele, o garoto mais sortudo de toda a via láctea!
Naquela noite dançaram como ele jamais
havia feito em sua vida sombria, sob os olhares aprovadores de todos; o casal
mais legal da festa. O gigante gentil e sua pequena pimenta de sorriso aberto e
vestido elegante. Ele tinha treinado bastante para dançar todos os ritmos, e
quando chegou a valsa não se intimidou um segundo sequer. Saíram bailando pelo
imenso salão como se fosse uma nuvem particular.
O que não notaram foi o imenso lustre
de cristal que enfeitava o salão e estava quase ao alcance da cabeça do rapaz.
Inadvertidamente ele ergueu uma das mãos para ajeitar os cabelos e enroscou a
manga do paletó no lustre. O acidente foi inevitável! Quando ela o girou, o
peso dele puxou o lustre, que desabou sobre a cabeça dele. A chuva de cristais
o levou ao chão desacordado e ensanguentado, com um arremedo de sorriso na cara
cortada, como se estivesse sonhando, em transe apaixonado.
Socorrido imediatamente, retornou ao
mesmo hospital, encaminhado direto para a cirurgia, para retirar diversos estilhaços
de cristal fincados em sua cabeça, rosto, braços e pernas. O lado bom: após uma
série de cirurgias plásticas ficaria como novo, sem cicatrizes visíveis. Mais
uns seis meses de recuperação da cirurgia e um ano para as plásticas. Ela não
sofreu um arranhão. E ele se julgou o mais sortudo dos seres viventes do
universo por amar tanto assim e poder sobreviver para continuar. Disse a ela
que, mesmo enquanto desacordado não deixou de sentir a conexão entre ambos, e
bailou com ela por todo o tempo. Declarou o seu amor e prometeu que, dali há
alguns anos poderiam se casar e viver felizes para sempre. Caso ele
sobrevivesse aos desastres que constantemente o acometiam, é claro.
Marcelo Gomes Melo
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