Esbagaçada: Jantares & Molecagens
Éramos
três casais reunidos em um desses restaurantes especializados em frutos do mar
elegantes, em nossa tradicional reunião social entre amigos, há muito
consolidada. A ideia era conversar, sorrir e, além de diversão, degustar boa
comida e bebida. Mais ou menos. Isso porque tínhamos um combinado antigo: o
rodízio de quem escolhia a refeição nesses encontros. A cada reunião, um de nós
recebia esse privilégio e sua escolha não podia ser contestada pelos outros,
por isso a pressão era enorme; nada de escolhas exóticas, por conta dos
paladares delicados principalmente das mulheres.
Essa era a minha vez de fazer a
escolha. Isso causava uma leve
apreensão... Terror, mesmo, de que eu os fizesse comer algo terrível e assustador.
As minhas escolhas eram consideradas por muitos como alternativas, embora o meu
gosto fosse extremamente simples. A ideia que carregavam era de que eu poderia
fugir ao padrão apenas para rir do desespero deles (longe de mim fazer algo
desse naipe!).
Então me observaram fazer a escolha
prendendo a respiração, olhos atentos para a reação do garçom e ouvidos ligados
para tentar decifrar alguma coisa de minha voz quase inaudível. O garçom não
demonstrou nenhuma surpresa ao anotar o pedido, o que para eles era um bom
prenúncio. Logo chegaram uns drinques para aguardarmos o prato principal e
todos começaram a conversar tranquilamente; o medo de ter que comer sopa de
olhos de peixe passara.
Pediram-me que comentasse a respeito
do prato e respondi misteriosamente se tratar de um caldo bastante afrodisíaco
e delicioso. E o melhor era que cada um
teria a liberdade de construir o que queria comer, tornando a refeição mais
forte ou light, a seu desejo pessoal. Isso arrancou sorrisos eufóricos de
todos, felizes com a margem de manobra caso não gostassem da escolha.
Restaurante de frutos do mar, caldo... Só poderia ser caldo de peixe, pensaram.
A
refeição chega. Um vasilhame exótico em forma de cunha com conteúdo fumegante e
cheiro maravilhoso. O acompanhamento: farofa, cogumelos, pimenta, azeitonas sem
caroço, verdes e escuras, alcaparras... O vinho era branco, para acompanhar as
iguarias. Os comentários foram os melhores, apesar de as mulheres se
entreolharem ao ver o caldo vermelho escuro.
O garçom explicou que a ideia era
fazer um pirão com a farofa, acrescentando os acompanhamentos conforme a
própria vontade; a consistência do pirão era também pessoal. Ele fez a primeira
vez, para que aprendêssemos, serviu o vinho e afastou-se. O relaxamento foi
total. A refeição estava deliciosa, o vinho, idem; a conversa melhor ainda!
O tempo foi passando, todos repetiram,
fazendo misturas personalizadas e outra garrafa de vinho foi esvaziada. Então
um deles resolveu perguntar mais a respeito da comida:
- Que delícia! Onde você ouviu falar
desse prato, não conhecíamos!
- Qual é o nome? Só é servido nesse
restaurante?
- O nome é “esbagaçada”. – respondi
suavemente.
- Nossa! Por que esse nome surreal? Do
que é feito esse caldo maravilhoso?!
- Bem... É caldo de tartaruga fêmea.
Um silêncio mortal em torno da mesa.
Olhares incrédulos procurando em meu rosto algum resquício de brincadeira.
- E por que o nome, “esbagaçada”?
- É a forma como é feito. Deve ser
algum prato típico de uma das ilhas caribenhas, não tenho certeza.
- E... Como é feito esse caldo, você
sabe?
- Não é proibido matar tartarugas?!
- Por acaso, sim, tenho uma vaga noção
de como é feito o caldo. – saboreei os olhares apreensivos antes de continuar –
Dizem que as tartarugas precisam ser caçadas com uma arma especial.
- Que arma é essa? Um taco de
baseball?!
- Não, metralhadoras. – mulheres
pálidas. Um dos homens não conteve o tremor das mãos – É preciso esbagaçar as
tartarugas, antes de colocar em um liquidificador e...
Fui interrompido por uma corrida de
saltos altos e mãos segurando as bocas em direção ao toalete feminino,
quebrando aquele clima de elegância e assombrando os demais frequentadores.
Acho que um dos caras não correu também por vergonha, mas estava esverdeado e
esvaziou a taça de vinho. Ficamos bebendo em silêncio e arremedos de riso, até
que, meia hora depois elas voltaram, recompostas. Pálidas, mas recompostas. A
mesa havia sido retirada e havia mais uma garrafa de vinho no lugar; encheram
as taças sem nenhuma delicadeza e beberam como se fosse água, tentando matar o
sabor do que comeram com tanto gosto.
Eu tive que, meio sorrindo, meio
envergonhado, desmentir, afirmando que era brincadeira. Pedi desculpas e disse
que não era caldo de tartaruga, e que muito menos foram detonadas por metralhadoras,
que ficassem tranquilos. O desconforto foi melhorando aos poucos, enquanto
observavam meu sorriso e iam se convencendo de fora apenas uma mera molecagem.
- Eu jamais os faria comer tartaruga
metralhada! Ora bolas! – e brindamos a isso. Agora já falavam pelos cotovelos,
e me recriminavam pelo terror que causei.
A conta chegou, pagamos, e o garçom,
sempre solícito, agradeceu a nossa estadia, perguntando gentilmente enquanto
nos levantávamos:
- Vocês querem que eu mande aprontar o
casco para viagem? Muitos levam como recordação da casa!
E provocou desmaios em série.
Marcelo Gomes Melo
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