Dos Anjos, um poeta infernal
Augusto
dos Anjos foi um poeta brasileiro atuante na fase dominada pelo Simbolismo e Parnasianismo, embora seja considerado por alguns biógrafos como pré
modernista, pela indiscutível singularidade de sua obra, usando o verso para
expressar a realidade de forma mais crua, não importando o quão dolorosa; rompe
com a erudição clássica, valendo-se dela apenas para subverter através de um conteúdo
ligado à ciência. Sua poesia chocante à época permanece surpreendente pela falta
de pudor em extrair completamente e literalmente o interior do ser humano,
remoendo suas vísceras em nome de expressar a essência do homem através da
palavra, coisa que achava impossível pela paralisia intrínseca à humanidade.
Surpreendentemente sua poesia foi
acatada e aclamada pelas camadas mais populares da sociedade brasileira,
alcançando a atenção e a divulgação pelos modernistas.
Já à época nota-se, segundo os seus
críticos, o espírito transgressor de sua poesia, bem como a busca por uma
globalização jamais sonhada naquele período, colocando-o na vanguarda de poetas
plurais e inclassificáveis.
Dos Anjos criou uma poesia
melancólica e triste, misturando a linguagem informal com termos científicos e
linguajar culto sem qualquer melindre ou ponto de comparação. Permanece através
das décadas e instiga, assusta e hipnotiza a seu tempo, garantindo-lhe um lugar
no panteão dos grandes poetas brasileiros de todos os tempos.
Segue um poema retirado da
coletânea Eu e outros poemas, que reúne a obra de Augusto dos Anjos.
Marcelo Gomes Melo
A MERETRIZ
A rua dos
destinos desgraçados
Faz medo.
O Vício estruge. Ouvem-se os brados
Da
danação carnal... Lúbrica, à lua,
Na
sodomia das mais negras bodas
Desarticula-se,
em coréas doudas,
Uma
mulher completamente nua!
É a
meretriz que, de cabelos ruivos,
Bramando,
ébria e lasciva, hórridos uivos
Na mesma
esteira pública, recebe,
Entre
farraparias e esplendores
O
eretismo das classes superiores
E o
orgasmo bastardíssimo da plebe!
É ela
que, aliando, à luz do olhar protervo,
O
indumento vilíssimo do servo
Ao brilho
da augustal toga pretexta,
Sente,
alta noite, em contorções sombrias,
Na
vacuidade das entranhas frias
O
esgotamento intrínseco da besta!
É ela
que, hirta, a arquivar credos desfeitos,
Com as
mãos chagadas, espremendo os peitos,
Reduzidos,
por fim, a âmbulas moles,
Sofre em
cada molécula a angústia alta
De haver
secado, como o estepe, à falta
Da água
criadora que alimenta as proles!
É ela
que, arremessada sobre o rude
Despenhadeiro
da decrepitude,
Na
vizinhança aziaga dos ossuários
Representa,
através os meus sentidos,
A
escuridão dos gineceus falidos
E a
desgraça de todos os ovários!
Irrita-se-lhe
a carne à meia-noite.
Espicaça-a
ignomínia, excita-a o açoite
Do
incêndio que lhe inflama a língua espúria.
E a
mulher, funcionária dos instintos,
Com a
roupa amarfanhada e os beiços tintos,
Gane
instintivamente de luxúria!
Navio
para o qual todos os portos
Estão
fechados, urna de ovos mortos,
Chão de
onde uma só planta não rebenta,
Ei-la, de
bruços, bêbeda de gozo
Saciando
o geotropismo pavoroso
De unir o
corpo à terra famulenta!
Nesse
espolinhamento repugnante
O
esqueleto irritado da bacante
Estrala...
Lembra o ruído harto azorrague
A
vergastar ásperos dorsos grossos.
E é
aterradora essa alegria de ossos
Pedindo
ao sensualismo que os esmague!
É o
pseudo-regozijo dos eunucos
Por
natureza, dos que são caducos
Desde que
a Mãe-Comum lhes deu início...
É a dor
profunda da incapacidade
Que, pela
própria hereditariedade
A lei da
seleção disfarça em Vício!
É o
júbilo aparente da alma quase
A
eclipsar-se, no horror da ocídua fase
Esterilizadora
de órgãos... É o hino
Da
matéria incapaz, filha do inferno,
Pagando
com volúpia o crime eterno
De não
ter sido fiel ao seu destino!
É o
Desespero que se faz bramido
De anelo
animalíssimo incontido,
Mais que
a vaga incoercível n água oceânea...
É a Carne
que, já morta essencialmente,
Para a
Finalidade Transcendente
Gera o
prodígio anímico da Insânia!
Nas frias
antecâmaras do Nada
O
fantasma da fêmea castigada,
Passa agora
ao clarão da lua acesa
E é seu
corpo expiatório, alvo e desnudo
A síntese
eucarística de tudo
Que não
se realizou na Natureza!
Antigamente,
aos tácitos apelos
Das suas
carnes e dos seus cabelos,
Na óptica
abreviatura de um reflexo,
Fulgia,
em cada humana nebulosa,
Toda a
sensualidade tempestuosa
Dos
apetites bárbaros do Sexo!
O
atavismo das raças sibaritas,
Criando
concupiscências infinitas
Como
eviterno lobo insatisfeito;
Na
homofagia hedionda que o consome,
Vinha
saciar a milenária fome
Dentro
das abundâncias do seu leito!
Toda a
libidinagem dos mormaços
Americanos
fluía-lhe dos braços,
Irradiava-se-lhe,
hírcica, das veias
E em
torrencialidades quentes e úmidas,
Gorda a
escorrer-lhe das artérias túmidas
Lembrava
um transbordar de ânforas cheias.
A hora da
morte acende-lhe o intelecto
E à úmida
habitação do vício abjecto
Afluem
milhões de sóis, rubros, radiando...
Resíduos
memoriais tornam-se luzes
Fazem-se ideias
e ela vê as cruzes
Do seu
martirológio miserando!
Inícios
atrofiados de ética, ânsia
De
perfeição, sonhos de culminância,
Libertos
da ancestral modorra calma,
Saem da
infância embrionária e erguem-se, adultos,
Lançando
a sombra horrível dos seus vultos
Sobre a
noite fechada daquela alma!
É o
sublevantamento coletivo
De um
mundo inteiro que aparece vivo,
Numa
cenografia de diorama,
Que,
momentaneamente luz fecunda,
Brilha na
prostituta moribunda
Como a
fosforescência sobre a lama!
É a
visita alarmante do que outrora
Na
abundância prospérrima da aurora,
Pudera
progredir, talvez, decerto,
Mas que,
adstrito a inferior plasma inconsútil,
Ficou
rolando, como aborto inútil,
Como o...
Do deserto!
Vede! A
prostituição ofídia aziaga
Cujo
tóxico instila a infâmia, e a estraga
Na delinquência...
Impune,
Agarrou-se-lhe
aos seios impudicos
Como o
abraço mortífero do Ficus
Sugando a
seiva da árvore a que se une!
Enroscou-se-lhe
aos abraços com tal gosto,
Mordeu-lhe
a boca e o rosto...
Ser
meretriz depois do túmulo! A alma
Roubada a
hirta quietude da urbe calma
Onde se
extinguem todos os escolhos:
E,
condenada, ao trágico ditame,
Oferecer-se
à bicharia infame
Com a
terra do sepulcro a encher-lhe os olhos!
Sentir a
língua aluir-se-lhe na boca
E com a
cabeça sem cabelos, oca...
Na
horrorosa avulsão da forma nívea
Dizer
ainda palavras de lascívia...
Augusto dos Anjos
Marcelo Gomes Melo
Muito bom mesmo.
ResponderExcluirGosto de...
"Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor da Humanidade é uma mentira.
É. E é por isso que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo."