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Elemento imaculado


O elemento desceu a rua doze, esquina com a rua Aurora Boreal por volta de 24h00, passos largos, carregando uma sacola de feira, dessas de nylon, senhor. Estava um calor da fornalha do cão, e estranhamente ele trajava uma blusa com capuz, alaranjada, dava para ver daqui mesmo.

O quê? Sim, senhor, o elemento descia a ladeira que é a rua doze pelo meio, porque àquela hora não havia tráfego de automóveis, desviando das poças do terreno irregular. O desgraçado do prefeito foi reeleito três vezes prometendo asfaltar, mas dessa rua para baixo é tudo barro.

O que eu estava fazendo na rua? Fumando o meu cigarrinho no meu portão; a mulher não gosta que fume dentro de casa, e eu sou bobo, mas não sou burro não senhor, não quero arrumar perrengue com a dona da pensão.

Sabe o que, senhor? Essa hora, depois da chuva, a madrugada limpa a poeira do ar, é a última olhada antes de dormir o sono dos justos. Eu fecho o bairro, por assim dizer; o último par de olhos a detectar tudo o que está acontecendo no início da madrugada. Geralmente não acontece nada.

O senhor sabe que aqui todo mundo se conhece, nascemos, crescemos e vamos morrer por aqui. Se bobear tem um monte de ossadas de ancestrais enterrados nesses jardins das casas, gente que se fixou aqui como árvore. É brincadeira, brincadeira, essa história das ossadas, não leve a mal, me perdoe, é que eu sou muito engraçado.

Não, não conheço ninguém como o elemento, indivíduo diferente, alto, cabeça grande, braços longos... Nunca vi o moletom laranja pelo bairro. O time de futsal dos meninos é verde e vermelho. E aquela sacola... Posso dizer para o senhor dentro daquela sacola. O quê? Não sei, estava dentro da sacola, não pude ver.

O modo como o indivíduo carregava a sacola, com firmeza, cuidado, sem andar devagar nem correndo, um passo constante até o final da doze. É, ali mesmo; sob o poste ele parou na encruzilhada, olhou para os dois lados, indeciso, então pude ver. Sim, sim senhor! Vi com esses olhos que a terra há de comer! Era narigudo! Um narigudo trajando blusa de capuz laranja carregando uma sacola misteriosa. Foi isso mesmo. Pode anotar aí! Foi exatamente o que eu vi!

E então o quê? Ah! Ele pareceu se decidir e virou à esquerda, desaparecendo pela rua quinze, na escuridão. A rua quinze não tem asfalto e nem iluminação. O cabra desapareceu nas sombras.

Sim, foi só o que eu pude ver, por isso que estou contando para o senhor, autoridade policial. Tiros? Aqui?! Não, não ouvi nada, não. O homem? Só vi isso, do indivíduo, achei estranho. Fez nada não, senhor. Era praticamente um elemento imaculado.

  Marcelo Gomes Melo

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