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O ataque da aranha furtiva



            Maurenício vivia entre o prazer e a fé, mantendo há anos aquele boteco vintage, humilde para distribuição de cachaça, reunião de desesperados e solitários para confessar, regido à pinga da boa e ovos cozidos, as mais profundas inquietações.
            Localizado entre uma igreja e um prostíbulo, o bar de Maurenício oferecia, a seu modo, quase a mesma coisa que os vizinhos: alívio para a dor e prazer consumido em altas doses. Em seu marketing espontâneo, intuitivo, ele nomeara o seu bar como “A bomba entre as fronteiras”.
            O bar tinha 40 anos de existência, criado quando Maurenício herdou o terreno com o falecimento do pai, e aos quinze anos decidiu abrir o negócio. O prostíbulo já estava lá, e pouco tempo depois o templo religioso foi erguido.
          Tendo sido iniciado sexualmente na casa dos prazeres, o rapaz também foi preenchido pela fé ao mesmo tempo, como coroinha, embora não tivesse vocação para a batina.
            Também não se casou. Ao fechar o seu bar vestido informalmente, Maurenício, perfumado, cabelo melecado com gel e grana no bolso esquerdo da calça, virava automaticamente para o lado da toca do amor carnal, satisfazendo os seus instintos mais secretos.
           Quando fechava o bar vestido formalmente, de paletó e gravata, óculos de grau e dinheiro no bolso direito da calça, virava na direção oposta e adentrava à casa divina, para satisfazer o coração e a mente, oferecer o seu adjutório para acalmar os medos e os pecados conscientes ou não.



         Tinha como fregueses frequentadores de ambas as instituições, sem conflito, todos os filhos de Deus molhando a palavra para ser feliz ou afogar as mágoas humanas. Maurenício agia como um cafetão, oferecendo as bebidas mais propícias para cada caso, de cerveja a uísque, de tequila a absinto; e também como confessor, escutando pacientemente os arroubos de felicidade ou de tristeza de seus clientes embriagados.
          Aquele bairro diferenciado, no entanto, aumentou a sua diversificação quando dois outros estabelecimentos foram inaugurados do outro lado da rua, bem em frente ao triunvirato que matava a sede literal, a sede pelo prazer e a sede espiritual. Um cassino espiritual, com todos os tipos de jogos de azar, e, ao lado, um escritório de advocacia: ”Marilda Silva Sem Associados”. A propaganda da dileta doutora prometia resolver quaisquer problemas rapidamente, do campo amoroso ao profissional, com enorme possibilidade de ganhos financeiros ao querelante, estando bom para todas as partes.
          Para Maurenício nada mudou, em princípio, pois os jogos que ele oferecia eram amadores; dominó, palitinho, rouba monte... Não conflitavam com os do cassino. E oferecia conselhos informais a respeito de problemas litigiosos, mas não era expert n o assunto.
          O que influenciou aquele relacionamento pacífico e útil foi uma única razão; a advogada Marilda passou a frequentar o bar do  Maurenício, bebendo, fumando, sorrindo, causando, fazendo contatos.
          Ela e Maurenício logo iniciaram tratativas íntimas, ainda não amorosas, mas pertencentes ao ramo do prazer mútuo. Pela primeira vez o dono do bar recebia “auxílio tesão” de forma gratuita, o que lhe deixou emocionado e embevecido.



          Em pouco tempo Marilda o convenceu de  que era uma vantagem financeira deixar de gastar com o quesito satisfação, e Maurenício parou de frequentar o prostíbulo como cliente. A recíproca foi verdadeira, porque, magoados, os trabalhadores do estabelecimento vizinho se tornaram ex-clientes.
          Marilda, munida com uma calculadora científica e com as escrituras bíblicas, também o convenceu de que seria um ganho econômico gigantesco se eles se casassem inclusive no religioso, pois em vez de os dois pagarem o “bolsa igreja”, pagariam como um casal, economizando 50%, que seriam investidos para proveito próprio.
          Encantado com a destreza econômica e sensual de Marilda, Maurenício casou. E com regime de comunhão de bens! Ela assumiu o balcão do bar ao lado dele, no turno da noite, quando fechava o escritório advocatício. Enquanto ele cuidava do atendimento ela amealhava clientes para o escritório. Marilda aumentou o preço das bebidas, passou a cobrar estacionamento e até cogitou cobrar entrada dos clientes, mas a isso Maurenício resistiu até o fim e vetou. Seria o cúmulo do comportamento capitalista, na visão dele.
          Nos meses que se seguiram a clientela do bar foi escasseando, enquanto a do escritório de advocacia aumentou sensivelmente. Marilda já não o ajudava no bar à noite, pois não havia clientes; então ela se divertia no cassino enquanto o marido ruminava sua tristeza espantando moscas no balcão, solitário.
          Foi no final do ano que ele percebeu estar à beira da falência, embora a esposa advogada estivesse cada vez mais rica e bem sucedida, feliz e cheia de grana. Nervoso ele interpelou a Marilda, que se sentiu ofendida e brigou, prontamente pedindo o divórcio!



          Maurenício ficou surpreso. Ela estava esperando qualquer desculpa para livrar-se dele! Desgraçada sem coração! Ficou ainda pior quando soube que a metade de todos os seus bens iriam para ela. E os seus bens consistiam no bar e nos produtos que comercializava, não tinha nada mais. Além disso, 60% do que sobrasse iria para Marilda, a título de pensão alimentícia. E mais 30% iriam para pagar ao escritório de advocacia dela, que ele havia contratado com multa de rescisão. Estava depenado.
          Quando argumentou com a juíza de que o bar não tinha clientes, portanto não teria como pagar, recebeu a informação sucinta: “É isso ou a prisão”.

          Desesperado Maurenício voltou para o bar, quebrando todas as garrafas de cachaça que encontrou. Não satisfeito retirou toda a gasolina do carro e ensopou o estabelecimento. A megera não ficaria com o fruto de uma vida de trabalho! Acendeu o isqueiro e incendiou o bar, sem se preocupar em sair de dentro.

          Na madrugada escura Marilda e os frequentadores do cassino viram o fogo se alastrar e destruir o boteco, a igreja e o prostíbulo de uma vez, como uma enorme tocha iluminando o bairro. Enquanto observava, ela já calculava o quanto gastaria para limpar o terreno e construir um novo escritório ainda maior. Cogitava também adquirir os terrenos vizinhos.

          Moral da história: o diabo não tem a mínima chance de prejudicar o local em que Deus se faz presente. Mas nenhum dos dois são capazes de superar os planos terrenos de uma advogada.



Marcelo Gomes Melo

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