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Algo que você não sabe o que é



           Escalar a muralha escorregadia com as mãos ensanguentadas, os dedos feridos e quebrados, o vento descaradamente sussurrando propostas indecorosas em meus ouvidos zumbindo, todas elas mortais, enquanto me empurrava impiedosamente para o lado e para o além não foi a parte mais difícil.
          Concluída a tarefa hercúlea após horas de sofrimento, com a testa franzida em concentração inquebrantável, alcançar o topo, a pele do rosto queimada pelo frio, os olhos esgazeados de cansaço e dor, ameaçar um arremedo de sorriso, mais uma careta, um esgar, a expressão mais feia do mundo, mas significando vitória, superação sobre todas as forças, naturais ou extrassensoriais. Vitória sobre os medos pessoais, sobre as indefinições da vida, as visões enganadoras e os terrores intrínsecos à uma alma que vagueia sem rumo em um mundo apocalíptico.
          Um longo olhar embaçado, sem enxergar a vastidão em redor, mas ainda assim superior, provocativo, um quase morto recusando-se a deixar o ambiente rústico dos vivos, por piores que sejam as provações. Um longo e renovado suspiro. Ar gelado magoando os pulmões e relembrando cada escoriação, e em seguida a lembrança de que a descida precisa ser iniciada. A missão concluída ao pisar no chão do lado oposto, a terra dura que equilibra os corpos humanos e permite que o olhar assista aos corpos celestiais em movimento quase imperceptível, brilhantes em seus destinos distantes.
          A descida é bem mais fácil, tentam se convencer os alquebrados, porque aos trambolhões chegam ao final quase sem escolha, empurrados constantemente pelas forças invisíveis que os dominam. E ao tocar finalmente o chão, os joelhos se dobram. As forças se acabam, a breve vitória anterior se transforma em tragédia. O suor escorre pela face pálida e enxerta a terra envenenada, enquanto, sem nem mesmo poder olhar em volta, é possível sentir a zombaria muda do ambiente, perguntando de que valeu tanto esforço, se o resultado era sabido desde o início.



          Não há mais forças quando a cabeça encosta o chão e os braços, inúteis, se deixam cair, completamente vencidos. O cérebro trabalha, entretanto. A vontade permanece. A boa vontade não se extingue ante as agruras. O ar que enche os pulmões permite a recuperação lenta. A natureza que destrói é a mesma que ajuda; não existe almoço grátis. Tudo exige uma troca, em apoio, em sorriso, em dinheiro, em favores... Em agradecimentos, sobretudo.
          Não é preciso ser religioso para ter fé. Não é necessário saber que é fé o que permite crer na ciência. Não é preciso denominar como fé. Basta lembrar que há algo que lhe permite quebrar e consertar, sofrer e superar; algo cujo nome você desconhece. Algo que você não sabe o que é.



Marcelo Gomes Melo

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