Anos de ouro: futebol de rua desprovido de violência
Naquela
época cada rua tinha o seu time de futebol, e uma disputa acirrada entre eles,
que disputavam a soberania do bairro no esporte com muita competitividade. Eu
era muito garoto para jogar no time principal, dos que estavam na faixa entre
17 e 21; estava com 13, mas era muito habilidoso na armação e no ataque,
magrelo, mas alto o suficiente para receber uma chance na equipe da Rua E,
graças à impossibilidade de um de nossos grandes craques, o “o picolé de macaco”,
que era forte, driblador e fazia a diferença no nosso time, que , por causa do
trabalho não iria jogar. Foi a razão pela qual me chamaram para completar o
time no jogo contra o Independente da Vila Fátima, time bom que estava completo
e nos receberia em seu campinho para mais um jogo. Seriam favoritos, pela falta
do picolé, e eu entraria sem nenhuma responsabilidade por ser muito jovem.
Mesmo os adversários reconheciam a nossa inferioridade momentânea.
Nosso
goleiro, o Wagner, era bem alto e usava fardamento completo de goleiro, com belas
luvas, caneleiras, meiões, cotoveleiras e joelheiras; parecia um
extraterrestre. Mas era um goleirinho medíocre, que atuava mais pela falta de
um bom goleiro na rua e pela estampa do que pela competência. Na zaga Alemão,
que corria muito e tinha muita força, embora pouca habilidade, “seu Luis”, o
mais velho do time, Wagner bagre, que tinha preguiça de correr, mas jogava
direito e, na lateral esquerda o Jaime, que era fominha demais. O meio campo
tinha Tonhão como volante, um cara quietão que jogava duro e chutava forte,
Picolé, que seria substituído por mim e Pedrão, o outro craque do time, canhoto
e cerebral. No ataque o ponta direita Davidão, crente gente boa, muito veloz e
fazedor de gols, Celso, centroavante lutador e Paulo Rego Balão, ponta esquerda
lento e fraco de bola, mas que quebrava o galho. Houve uma mudança tática: eu
jogaria aberto pela ponta esquerda, embora fosse meio-campista, por ser o mais
jovem de todos, para não causar possíveis problemas com falhas em uma posição
que nos traria danos. Paulo Rego Balão ficaria como centro avante e o Celso
fecharia o meio campo, foi o combinado para tentar enfrentar de igual para igual
o Independente da Vila Fátima.
O campinho dos caras era de terra,
como todos os campinhos do bairro, com um barranco em um dos lados e o quintal
de uma casa de outro. As traves de madeira eram novinhas, enquanto as do nosso
campo não tinham travessão ainda, apenas dois caibros fincados na terra.
O Pedrão e o Picolé, que eram bons,
jogavam de chuteiras e meiões, assim como o “seu Luis”, os demais usavam tênis comum,
kichute ou bamba, ou, como eu, jogavam descalços. Não havia fardamento, a não
ser para o nosso goleiro ruim; jogávamos com calções e camisetas diferentes, de
qualquer cor, enquanto os adversários usavam calções diferentes mas camisetas
iguais, brancas como as da aula de educação física, com o nome do time bordado em
azul do lado esquerdo do peito.
Eles me chamavam de Baggio, em relação
com o craque italiano porque eu jogava de calção branco e camiseta azul, e
havia adotado o corte de cabelo do jogador, com uma trancinha, o que era
bastante diferente naqueles tempos. Também era bom de bola, consideravam que
logo teria condições de jogar no time principal sem problemas.
Nessa
estreia ninguém colocou peso às minhas costas, pelo contrário: disseram-me para
ficar na ponta esquerda e fazer o que fosse possível, sem preocupação. Caso
fôssemos derrotados haveria ainda o jogo de volta em nossa rua, e o Picolé estaria
no jogo. Mas eu estava ansioso e feliz, com um frio na barriga, pensando em
fazer o feijão com arroz e não comprometer. Quem vencesse a melhor de duas
partidas enfrentaria o time da Rua D, que tinha um campinho de terra preta,
daquelas que grudavam na pele e deixavam a roupa ainda mais suja.
O jogo começou e, lá pelos dez minutos
o Pedrão fez uma jogada sensacional, driblando dois no meio campo e, na chegada
do zagueiro, tocou de canhota pra mim, que estava posicionado no bico da grande
área adversária pela esquerda. Não hesitei e, de peito de pé direito enchi a
cara da bola, de trivela, enfiando no fundo do barbante na saída do goleiro dos
caras, um japonês que pegava muito. Um a zero, gol meu! Todos me cumprimentaram
e festejaram, combinando de fechar o meio e logo tentar o segundo.
Desse momento até o final do primeiro
tempo foi pressão do adversário e nosso time se defendendo, jogando bola no
Pedrão para desafogar e tentar o gol. Eu praticamente nem peguei mais na bola
depois de fazer o gol. Era alto para a idade, mas magrelo demais, e perdia as
divididas no ombro para a zaga forte do time deles.
No intervalo, bebendo água da torneira
da vizinha e conversando sobre a partida, umas modificações foram feitas:
Paulinho Rego Balão, que mal participava das jogadas voltou para a esquerda no
meu lugar; o religioso Davidão passou para o centro do ataque, porque poderia
fazer gols mais do que qualquer outro e eu fui para a direita, plantar mais no
meio campo e tentar ajudar a desarmar o Independente. A mudança não causou
efeito porque o adversário atacava mais e nós não conseguíamos contra-atacar
com velocidade; eu continuava sendo um peso morto no time, e troquei de lugar
com o Alemão, que se adiantou e me deixou na lateral direita sem atacar, meio
escondido. Mesmo assim, um a zero para nós, gol meu.
As
bolas passavam por cima, pelo lado, batiam na trave e no nosso goleiro, mais
perdido do que cego em tiroteio, mas não entravam. Faltando dois minutos para acabar,
o atacante deles driblou dois, fintou o goleiro Wagner e, sem ninguém à sua
frente bateu pra fora, perdendo o gol mais feito da partida. Parece que sairíamos
dali com a vitória, incrivelmente!
Tiro de meta. O Wagner coloca a bola
no bico da pequena área, afasta-se e, em vez de dar um chutão resolve tocar
curtinho no meu pé, ali na lateral direita. Dominei com calma e girei o corpo
para sair jogando, mas o time deles deu o abafa e partiu pra cima dos zagueiros
e pra cima de mim, com o intuito de tomar a bola. Em uma partida normal, entre
o pessoal da minha faixa etária, eu não hesitaria em driblar o marcador e sair
jogando de cabeça erguida, mas devido as circunstâncias resolvi apostar no que
era mais seguro e, como era permitido na regra à época, recuei a bola pro
goleiro lentamente. Ele poderia segurar com as mãos e fazer alguma cera até que
a partida terminasse, isso era permitido.
Verifiquei em câmera lenta, a saída do
goleiro, com as mãos em concha para segurar a bola e deitar abraçado a ela; vi
também, assombrado como todo o restante do time, a bola passar por baixo das
mãos dele e por entre suas pernas, lentamente se encaminhando para o fundo do
gol... Como em um sonho, Wagner esticou a mão enluvada, tentando em vão
alcançar a bola que acabara de deixar passar bisonhamente... O tempo se
esgotando, a bola suavemente passando a linha e emaranhando-se às redes... O
nosso goleiro estirando no chão, batido... Gooooollll! O time adversário
empatava a partida aos 45 do segundo tempo! Tecnicamente contra. Fiz um gol a
favor e outro contra, nos estertores do jogo. Eles ainda comemoravam o empate
quando o jogo acabou.
Um a um era um bom resultado. Ninguém
culpou a ninguém, como sempre, e os garotos da minha faixa etária que foram
assistir ao jogo e vibraram com o meu gol entraram em campo me cumprimentando
pelo jogo, como todos os outros. Eu estava triste. Contente com a estreia no
time adulto da rua, com o golaço que fiz, mas... Aquele empate deixou uma
cicatriz na minha alma de jogador para sempre. Depois daquilo ainda sonhei por
dias outro desfecho para a jogada. Eu poderia ter driblado; poderia ter dado um
chutão pela lateral... Não deveria ter confiado no goleiro... Mas como, se
todos, inclusive ele confiaram em minha escalação?
O fato é que essa lembrança ainda me
persegue, e de vez em quando ainda sonho com a jogada que deu o empate ao
adversário na minha estreia. De qualquer forma tudo acabou em tubaína e risadas
no boteco perto do campo. Era uma época sem preocupações além de um resultado
do jogo de futebol.
Marcelo Gomes Melo
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