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Um prudente cadáver ambulante




         Você é um homem abaixo da linha do radar. Não costuma demonstrar grandes emoções, desfruta de uma boa família que lhe tolera com certo carinho, embora não ouça as suas opiniões com grande interesse; tem amigos fiéis de longa data, com quem se reúne vez por outra para um jogo de cartas, uma pescaria... Nas reuniões de condomínio cumprimenta a todos gentilmente e se manifesta apenas para concordar com a maioria; é reconhecido como um bom vizinho que sorri todas as manhãs, acena timidamente, participa de discussões sobre futebol, religião e política com todo o cuidado para não infringir a linha do bom senso e bater de frente com os fanáticos.
          Você vive a vida em uma linha reta infinita, mas não se incomoda de ficar no acostamento, parado, dando lugar aos desesperados em chegar em algum lugar à sua frente; frequenta as filas do açougue, do Banco, do supermercado em silêncio, divagando enquanto o cliente no caixa brada por descontos em cada produto, mostrando os folhetos de concorrentes para comprovar, e os que estão logo à sua frente abrem pacotes e os comem antes e pagar, mesmo que o locutor do estabelecimento implore encarecidamente, imitando a voz de Silvio Santos, que não o façam antes de passar pelos caixas.
         

  

          Você passeia com seu cachorro sempre que pode e dificilmente rebate as acusações da esposa de que não trocou a lâmpada nem levou o lixo pra fora; vai às reuniões de família ouvir as mesmas piadas e saborear uma cerveja enquanto alguns cantam vantagem, outros discutem e aquele bando de crianças barulhentas derrubam coisas e choram o tempo todo.  

            Você ouve a respeito de política, investimentos e esportes, sorrindo quando todos sorriem e lamentando com a cabeça em negativa quando parece apropriado. Raramente lhe pedem opinião sobre alguma coisa, mas todos têm opinião, geralmente tolas sobre fatos dos quais desconhecem inteiramente  os ângulos e particularidades.
          Se fosse uma cor, você seria bege. Se fosse um chá, com certeza de chuchu; um cidadão exemplar, abaixo do radar, jamais notado por ninguém, portanto livre de inimizades ou inveja alheia. Todos se julgam melhor do que você em algum aspecto, essa é a razão para receber tapinhas nas costas, condescendentes e falsos, e votos de felicidades o tempo todo.
          A única demonstração real de amor vem do seu cachorro, que lhe recebe com alegria e salta sobre você quando chega do trabalho, embora rapidamente lhe esqueça em troca de qualquer outro membro da família que surja ao mesmo tempo. Os seus filhos jamais lhe perguntam algo pertinente, a não ser se viu em que lugar deixaram a chave do carro, distraidamente. Sua esposa nunca lhe perguntou qual é a sua comida preferida, embora saiba a de todos da família, inclusive do genro e da nora. Você faz as compras, mas é um soldado resistente, come o que tem sem reclamar e ainda é criticado por não repetir ou por não elogiar a refeição.
          Você é um homem de paz, frequenta a igreja e oferece café da tarde para o padre, de vez em quando; também recebe o pastor e família para um jantar ou outro e também já ofereceu frango com farofa a macumbeiro do bairro, sem se importar que ele fumasse charuto na sala de estar, bebendo o seu conhaque importado.




           Um homem respeitador das leis, cumpridor dos deveres e pagador de impostos; desse tipo de figura que as pessoas mais efusivas esquecem-se de cumprimentar em um grupo de cinco pessoas, sem maldade, apenas por ser incapaz de notá-lo no bolo. Você vive sua vida ou cumpre sua existência sem expectativas, grandes ou pequenas. Não julga. Vota no candidato mais agressivo porque é o oposto de você, e isso deve ser bom, afinal. Na visão dos fofoqueiros, que estão sempre a postos para tirar conclusões e espalhar comentários você é uma criatura sem desgaste, físico ou mental; talvez até seja a esperteza e pessoa sob essa aparência humilde, idiota, quase invisível. Especulam até que você possua um grande tesouro em algum lugar, que mudará o rumo da família e do bairro quando se for. Essa hipótese chega a ser discutida pela família às suas costas, e alguns até são pegos suspirando, torcendo para que sua morte chegue rapidamente e a caixa de Pandora lhes traga benefícios monetários incomensuráveis.
          Ninguém conhece as suas dores de cabeça. Ninguém sabe de suas dores de estômago, dos sais de fruta que costuma adquirir na farmácia; sua esposa nem percebe seus suores noturnos ao acordar apavorado de pesadelos dos quais nem se lembra, noite após noite. Os seus pais, que se foram cedo demais, saberiam só de olhar pra você; sua mãe lhe faria uma sopa e seu pai lhe contaria uma história em voz baixa e calmante, afastando todos os seus temores.
          Jamais lhe perguntaram por que chegou mais cedo do trabalho, um dia ou outro, carregando uma receita em uma das mãos e vários remédios na outra. Jamais lhe abraçaram mais de uma vez no ano, no natal, quando lhe entregavam um pacotinho com uma meia, um lenço ou um suéter vermelho, cor que você odiava porque chamava muito a atenção.
          Os seus ódios se mantiveram abafados por tempo demais. Envenenaram a sua alma, impregnaram o seu sangue de dor, o coração de tristeza e o cérebro de descrença. Você é a imagem de um lutador ao seu modo, desarmado, sem caretas ou ofensas proferidas em voz alta. Sempre se julgou alguém à parte do mundo, ou em um mundo à parte, carregando suas cruzes pesadas sem um pio, envergando suas costas alquebradas sem uma queixa... Nunca teve começo; desde que nasceu considerou sua existência um fim permanente. O inevitável jamais lhe assustou, foi assim que implodiu, como um prédio condenado. Não levantou poeira, manteve-se fiel à sua ineficácia até o fim. Não apagou porque jamais teve luzes em torno de si. Adquiriu um ticket só de ida para algum lugar sabendo apenas que não tinha contas a prestar; e se tivesse não as contestaria.




       A esposa levantou certa manhã e saiu para trabalhar como sempre o fazia, sem sequer olhar para o lado da cama em que você habitava. A vida percorreu o seu rumo tranquilamente até a hora do almoço, quando um dos filhos, chegando da escola, percebeu a porta do quarto entreaberta e o viu lá deitado, estirado, sem expressão como sempre. Fechou a porta e desceu as escadas para jogar vídeo game, o que fez durante toda a tarde. Chegando o resto da família informou que o pai não fora trabalhar, estava de boa na cama desde que ele chegara do colégio.
          A mãe, resmungando sobre a sua inutilidade, preparou o jantar e gritou por você que estava pronto. Jantaram tranquilamente sem a sua presença e depois foram ver novela. Por volta de meia noite ela subiu para se preparar para dormir e sequer notou que você permanecia na mesma posição em que estava quando ela saiu de manhã. Foi assim pelos próximos três dias, até que ela ralhou com você por causa do mau cheiro; não estranhou a ausência de resposta, nem a palidez excessiva que era a sua cor de sempre.
          A sua morte só foi notada porque ela esbarrou em você sem querer e viu que algo estava ainda mais errado do que a sua existência. Não havia respiração. Ela chamou os filhos, que após rápido exame concordaram a sua ida para o além. Nada de choro, nenhum escândalo, somente divisão objetiva de tarefas: um telefonaria para a polícia, hospital e parentes. Outro para a funerária e floricultura; alguém avisaria a empresa e postaria a notícia nas redes sociais; e combinaram que, no primeiro jantar após o enterro montariam uma força tarefa para vasculhar a casa em busca de algum mapa de tesouro deixado por você.
          Está claro que receberia todas as comendas de homem bom, responsável e preocupado com as pessoas e a natureza. Beberiam em torno de seu caixão, comeriam com avidez e contariam discretamente piadas, para passar o tempo.
          Cinco minutos depois de seu retorno ao pó, estaria esquecido para todo o sempre, por todos os que o cercaram. Restaria apenas a lápide, ideia de um filósofo que o conhecia apenas superficialmente, de acenos quando cruzavam os olhares, um e cada lado da rua; os dizeres eram: “Morreu da mesma forma que viveu: Um prudente cadáver ambulante”.




Marcelo Gomes Melo

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