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Não mate antes do jantar



          A fome era grande e o desespero cruel, aquele barulho assustador ecoando no cérebro, advindo do estômago vazio urrando por ser preenchido.
          Não há luz que resista sob o espectro tenebroso da inanição, e o corpo tremia incontrolável, revoltado, exigindo alimentos para aplacar o indescritível horror de não ter o que mastigar.
          Uma palidez extrema se destacava na tez opaca. Os olhos piscavam como uma lanterna cujas pilhas estavam no fim. Uma rápida olhada no relógio digital, que pesava toneladas em um braço sem forças constatou que, para chegar ao oásis de sua residência, onde, do portão já sentiria os odores da comida o fariam flutuar até a mesa na qual degustaria arroz, feijão, salada e bife com batatas, exaurindo a necessidade por alimentos gostosos e nutritivos levaria, com sorte, duas horas entre, metrô, ônibus e Uber.
          Era muito tempo para aguentar! Começou a pensar em atitudes radicais. Sem forças ficaria mais difícil, mas o pavor empurrava para a beira do abismo. Ou aplacava o que estava lhe matando, ou morria da maneira mais lamentável do mundo.
          Momentos aterrorizantes, decisões corajosas. Não havia outra possibilidade. Com a visão turva e o andar trôpego decide pela eliminação voraz daquilo que o arrastava impiedosamente para o túmulo.
          Aproximou-se de uma das barraquinhas do terminal de ônibus e solicitou duas dúzias de salgadinhos, vendidos a dois reais o combo com um copo enorme de suco artificial. Como um venezuelano em tempos difíceis, devorou em questão de minutos, pedindo um churrasco grego para reforçar. Pão francês recheado com um quilo de carne desconhecida, mas que soterrou o tremor do corpo e calou o ronco do estômago de uma vez por todas. Empanturrado.



         Agora a cor estava restituída à sua cútis. Um sorriso de lobo surgiu, saciado e contente. Para arrematar tomou uma branquinha e um café e retornou ao ponto para pegar a condução a caminho de casa. Dormiu como um rei durante as horas de viagem, roncando e babando, sem sonhos. Acordou exatamente no local em que descia rotineiramente. Desceu e encontrou a família à mesa, esperando com a deliciosa janta prontinha.
          Cumprimentou a esposa e os filhos com um beijo e rejeitou olimpicamente os quitutes que o esperavam, indo direto para o quarto em que desabou sobre a cama e dormiu instantaneamente, com sapato e tudo.
          Atônitos, os filhos e a esposa se entreolharam e depois deram de ombros, degustando a comida fresquinha e deliciosa.
          A vida é lotada de situações imperceptíveis a olho nu, no meio da multidão que se cruza diariamente em velocidade estonteante.



Marcelo Gomes Melo


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