- Como é que você não chora?
- Não há mais lágrimas em mim.
- Então é como se você carregasse um
deserto dentro de si, e eu um oceano.
- Um lago, eu diria. Escuro,
misterioso, parado, exibindo uma falsa calmaria enganosa, perigosa.
- É assim que me enxerga?
- Eu fui muito além disso. Já
mergulhei e sofri todos os açoites possíveis. Todos os prazeres suaves e
irrestritos também.
- Como se sente?
- Como alguém que retornou das
profundezas emocionais e voltou a respirar ar fresco, mesmo que sob um céu
cinzento imutável.
- Isso nos desconecta?
- Pelo contrário, evidencia a impossibilidade
de rompimento dos laços que nos unem. Isso parece claro nos piores momentos.
- Você parece seguro.
- Preso às minhas convicções. Longe de
vê-las funcionar plenamente, por erros meus, por diversas outras convicções
diferentes das minhas. Posso apenas lidar com o que desejo, mas não controlo
desejos alheios.
- O passado não morre, o futuro é logo
ali, não acredita em mudança, em melhoria?
-
Não me preparo para pensar além do presente, isso ocupa o meu pensamento. Tento
tomar decisões o tempo todo. O passado é uma sequência de arranhões que não
saram por completo e me obriga a aliviar usando diversos paliativos.
- Parece-me tão... Linear.
- Ao contrário. É a linha da vida,
cheia de altos e baixos.
- Por fora você parece tão frio!
- Contido. A secura desértica à qual
você se referiu equilibra o comportamento, mas o meu cérebro atua
fervorosamente. Você é mais gélida do que eu, mesmo parecendo ser mais humana.
- Em que isso nos afeta?
- Opostos se atraem.
- Por isso vivem sobre o fio da
navalha?
- Assim é a vida a dois.
- Somos capazes de lidar com isso
juntos?
- Em determinadas circunstâncias, sim.
Em outras a tendência é sofrermos calados. Individualmente.
- Sinto-me triste em horários
diferentes. Os momentos felizes acabam por causar tristeza quando relembrados.
- A tristeza é a cola que se insere na
forma da felicidade para torna-la consistente.
- O que irá acontecer conosco?
- Navegaremos por mares bravios,
tentando encostar as mãos mesmo estando em navios diferentes.
- O que lhe mantém sóbrio vivendo
nessa aflição constante?! Eu sinto que vou quebrar o tempo todo. Que
resiliência é essa?!
- Eu vivo alquebrado. Sou um homem em
pedaços. Tudo dói. Mas estou vivo.
- Nada resolve isso?
- Amor.
Marcelo Gomes Melo
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