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Desgraças engarrafadas



          A primeira vez em que tentaram me matar eu sequer havia nascido. Foi logo após a concepção, quando o meu pseudo pai concordou com que a minha futura mãe comprasse e ingerisse veneno para me eliminar do caminho da vida.
          Eu fui salvo por Deus, e por vias tortas nasci; resplandecente e marcado como a única criança do berçário com o estigma de ser indesejado. Então, pela segunda vez atentaram contra a minha vida através do vidro com olhares fulminantes de piedade e desprezo que a atingiram a minha alma de maneira cortante. Sobrevivi a isso em silêncio, o único garoto a não emitir nenhum som até ser retirado de lá para uma casa em que eu era apenas mais um obstáculo para a continuação de suas vidas torpes. A propósito: no berçário eu estava amordaçado.
        Logo, em uma noitada de cachaça e drogas, na qual assisti inerte deitado em um lençol sujo no canto do quarto, entre embalagens de salgadinho e latas de cerveja vazias e garrafinhas plásticas de corote, a minha vida recém-inaugurada correu risco mais uma vez. Tocaram fogo no quarto e morreram assados aos gritos, enquanto fui encontrado a tempo, sem emitir um piu, arroxeado pela falta de fôlego, salvo pelos bombeiros para continuar a minha existência diferenciada.
        A infância transcorreu tranquila, de Instituição para Instituição, maltratado, torturado, humilhado, aprendendo todo tipo de coisas ruins; sobrevivendo como um rato nos esgotos pútridos, perseguido pelas particularidades da má sorte, negando a opção de me entregar e morrer mesmo com a vida desgraçada com a qual fui premiado.



         Com a chegada da juventude deixei de ser inocente, comecei a contabilizar sofrimento em dobro, reclamar da injustiça social e da própria sociedade para justificar os meus atos.
          Hoje, na idade adulta, me considero um profissional que usou a experiência acumulada para devolver ao povo tudo o que recebi durante o período de maturação ao qual fui submetido. Sou top, vencedor na minha área de serviço. Certo, comecei como traficante de órgãos e especulador no mercado financeiro, admito, mas atingi a mais alta cúpula e estou apto a mentir e roubar com muito mais precisão. Eu sou político!



Marcelo Gomes Melo


 

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