O beijo do escorpião
Foi
bem no calcanhar que ele sentiu o leve beijo do escorpião, enquanto caminhava
no meio da rua empoeirada sob o sol escaldante do meu dia, observado por uns,
ignorado por outros...
No fim da rua, a igreja, imponente,
com as portas abertas a qualquer beata ou a qualquer pecador. Da varanda do
saloon, velhos jogavam conversa fora bebendo Bourbon, trabalhadores suados
bebiam cerveja e escolhiam suas prostitutas favoritas.
Os olhos do homem se apertam sob o
brilho do sol. Arranca o chapéu negro como a roupa que vestia e passa a mão
pelos cabelos ensopados de suor, antes de voltar a enterrá-lo sobre a cabeça.
Passa a língua pelos lábios secos com súbito ataque de sede.
O calcanhar arde, mas ele ignora,
continuando a caminhada em direção à casa de Deus, lentamente. Toca os próprios
quadris e se surpreende por não haver armas.
As suas armas eram suas filhas; não se
lembrava porque não as estava carregando. Tinha certeza de que era imperativo
alcançar a igreja, mas não imaginava o motivo.
Um calafrio percorreu a sua espinha
dorsal e cambaleou. Sentiu a visão escurecer por segundos, a respiração
tornou-se difícil. A história de sua vida embaralhou a sua mente. Tiroteios aos
quais sobreviveu, mulheres a quem amou, tristezas às quais superou...
O tornozelo estava inchado e a dor
aumentava. Olhou para o chão e observou o pequeno escorpião surgir no limiar de
sua lustrosa bota, para depois escorregar e escapar em meio à poeira, vítima de
sua própria natureza selvagem.
O ritmo da caminhada era constante,
mesmo que tentasse acelerar os movimentos. A febre já o consumia, duplicando o
calor sufocante de quarenta graus. Alguém saiu de dentro da igreja, colocando a
mão espalmada sobre os olhos para enxergar melhor; em seguida voltou-se para
dentro e anunciou algo.
Ele
estava chegando bem perto da igreja. O braço estava pesado, mas conseguiu
erguê-lo até o bolso interno do paletó, de onde tirou uma caixinha escura.
Parou para abri-la, com dificuldade ampla.
Era uma aliança. Para que diabos
carregava uma aliança?! Tossiu vigorosamente, e um laivo de sangue banhou a
terra aos seus pés. Estava a três passos da escadaria curta de madeira quando
caiu de joelhos. Algumas pessoas saíram da igreja e se posicionaram ao lado da
porta, olhando com assombro e certo nojo para aquela figura prostrada,
ensanguentada, de olhos mortiços.
Essa atitude é causada única e
exclusivamente pela falta das armas, pensou o homem, amargurado. O padre
juntou-se aos outros, mas logo desceu as escadas e se aproximou justamente à
hora em que ele tombou, incapaz de manter-se sequer de joelhos.
Então a noiva saiu, segurando a cauda
do belo vestido. Ele sabia que ela estava gritando, mas não ouvia nada do que
ela dizia. Nem fazia ideia de quem era aquela linda mulher que em breve se
casaria para ser feliz para sempre.
Foi tomado por enorme surpresa quando
ela o agarrou com força, manchando o vestido de sangue, abraçando-o como se a
sua vida dependesse disso.
Não
conseguiu perguntar nada a ela, pois os seus olhos se tornaram opacos e
desfaleceu, gélido nos braços dela. Morto. Sem se lembrar de nada, nem dos
próprios pecados.
Um dos observadores comentou em voz
baixa, assim que confirmada a morte do homem de negro:
- Um dia ele disse que preferia morrer
antes de casar.
Marcelo Gomes Melo
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