Enquanto a chuva castigava a cidade cinzenta, inclemente, as barreiras caíam uma a uma no calor do quarto de dormir. O que começara como uma conversa inusitada entre meio-inimigos ou semi-amigos, dependendo da situação, com ela sentada na cama, pernas cruzadas como alguém em meditação, e ele encostado em uma parede, sentado em um banquinho inclinado, de frente para um poster de uma banda de rock dos anos 90, cercado de enfeites femininos, e até um violão com adesivos de bandas punk.
Não estava claro como estavam no quarto dela naquele momento, as cortinas abertas da janela mostrando a chuva e os pingos que castigavam a vidraça. Como sempre o papo era provocativo, porque ambos tomavam cada olhar como provocação pessoal, cada meio-sorriso como um convite para a batalha e cada piada como um golpe fatal em suas honras preservadas a ferro e fogo.
Se perguntassem eles não saberiam dizer a razão de tanta rivalidade gratuita, já que socialmente tentavam conter os arroubos de péssimo humor e tratar um ao outro com cortesia forçada, o que todo mundo percebia, aquela tensão de uma corda de guitarra esticada a ponto de se romper ao mínimo toque. Ninguém perguntava, mas na ausência de ambos a conversa girava em torno de mil possibilidades do que estava acontecendo com ambos, e como nunca notaram o início daquilo.
Dividiam uma garrafa de vinho, no gargalo, e falavam das supostas desavenças que alimentavam, e por que o faziam, e a cada sentença trocada ia ficando claro que se tratava mais de atração do que aversão. Mais de necessidade de se conhecerem melhor e mais profundamente do que o contrário.
E isso mudava as suas expressões e lhes secava a boca; mudava o posicionamento do corpo e alertava os sentidos. Ele agora dividia a cama com ela, e o vinho, e os olhares se comiam furiosamente. Ofegavam, quase confessando, a chuva por testemunha, as barreiras caindo...
Os corpos se enroscando, as emoções fluindo até entrar em erupção. Todas as barreiras no chão, a chuva insistente verificando, o amor desnudado a ponto de não importar nada além.
As notícias aterradoras sobre as barreiras que desabaram causando tumulto no vilarejo nem chegava perto das barreiras derrubadas naquele quarto, em que a paixão se permitiu revelar controlando corpos e almas das mais novas vítimas do que é inerente e irreparável.
Marcelo Gomes Melo
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