Há vida e morte à luz da razão?
A
exumação do cadáver era iminente. Aquela sala asséptica, fria, na semi escuridão
era o retrato fiel que um corpo sem vida necessitava para repousar. A antessala
da cova sob o invólucro do caixão aveludado, enfeitado para os olhos cuidadosos
dos vivos, que medem o status do morto pelo luxo da cabine que o levará ao
inferno sem escalas.
Beberão,
comerão e exaltarão as qualidades do morto descaradamente, como se em tal
figura não houvesse pecados, medos, cinismo e crueldade.
Naquele
instante o cadáver recebia a dádiva do não julgamento, estirado na maca gelada,
nu, com os olhos parados, sem luz, mirando o além. Só ele sabia o caminho para
o qual seguiria em breve.
O
legista, tranquilo e assustador como qualquer legista que se preze, manuseava
os instrumentos de corte com destreza e algum sadismo por ter a chance de
descobrir o que existe dentro do corpo. As entrelinhas dos órgãos, o local em
que se escondem o mal, a inveja, a capacidade de errar ou de acertar... O
legista, nesse momento se considera um deus; seus olhos brilham e a íris se
alarga, o sorriso grudado em seu rosto é apenas um espasmo de concentração
exigida para descobrir fantasmas interiores que agiam em consonância com a alma
viva do homem.
Ali,
imóvel, gelado, sem poder algum de decisão fica difícil determinar quem ele era
e como o era em vida. O tom azulado da pele era igual ao das centenas que
diariamente ocupavam aquela maca de aço naquele ambiente sinistro e impessoal.
Haveria
alguma bondade habitado aquele corpo por pouco tempo que fosse? A linha de seus
lábios finos arroxeados teria, em algum momento, oferecido um sorriso a alguém
ou a si mesmo? Aquelas mãos entrevadas outrora apertara com firmeza à mão de um
amigo, de uma amante, de um oponente?
O
que a vida lhe havia dado que a morte o force a lamentar ter perdido?
Os
cabelos negros e lisos, compridos e escorridos continuariam a crescer, mesmo
depois de assumir a moradia final. As unhas pintadas e bem cuidadas também,
fazendo a um mero mortal imaginar se seria a centelha da vida que se recusa a
deixar o ser inanimado que não mais verte sangue, sequer respira?
A
morte é um táxi ao qual ninguém chamou, mas aparece à hora aprazada, com quem,
não se sabe, para encaminhar o vivente ao final dos seus dias como os conhecemos.
É
intrigante a serenidade de alguns em confronto com outros atormentados, tortos,
queimados, destruídos fisicamente até expor os fracos ossos doentes!
Há
quem viva para desvendar os mortos, como o legista. Como eu. A morte é tão ou
mais misteriosa do que a vida, que é mais dinâmica, e sofre a influência
constante de fatores externos à própria vontade, como amor, dor, censura,
cansaço, desmotivação, julgamento, além das intempéries naturais universais.
-
Estagiário, esse corpo será o último. Exerçamos a nossa arte após um lauto e
merecido jantar, querido rapaz.
-
Sim, senhor – concordei com um tímido sorriso irônico. Chamar uma caneca de chá
quente e um hambúrguer com fritas de lauto jantar exigia muito boa vontade.
Notei a lua cheia, branca como a pele do defunto iluminando a noite através da
janela.
Deixamos
a porta pesada escorregar para bater com estrondo, parecida com a porta de um
frigorífico; fiquei para trás, impedindo-a de bater, pois precisava trocar o
guarda-pó por meu casaco mais quente. Caminhei para o fundo da sala, local em
que depositava o paletó no espaldar de uma velha cadeira.
Enquanto
me trocava ouvi um estalar esquisito de ossos, que me gelou o sangue. Tendo
vestido o casaco me virei lentamente em busca da porta, mas o que vi complicaria
a minha vida e sanidade para o resto da existência inócua que imaginava para
mim.
O
cadáver sentara-se sobre a mesa, de costas pra mim.Agarrei-me à cadeira,
tremendo como vara verde, sem conseguir afastar os olhos do fenômeno
cadavérico, que lentamente colocou-se de pé. Era bem alto, o sacana! Farejou o
ar por alguns segundos e eu agradeci mentalmente por não ter usado meu
desodorante Axe, mais forte do que creolina, enquanto rezava desesperadamente.
O
morto saiu lentamente, pelado, indiferente, inanimado, totalmente estranho.
Os
meus joelhos cederam e comecei a acreditar em vida após a morte imediatamente;
em criaturas da noite e em festas de Halloween.
Fiquei
lá, prostrado, assustado, pensando ferozmente em como explicar ao meu mentor e
legista o sumiço do morto... E a razão pela qual fiz xixi nas calças.
Acredito
que os acontecimentos se auto explicam.
Marcelo
Gomes Melo
Quero agradecer a visita, caro António,será sempre uma honra recebê-lo. Estive em seu blog e já o sigo pela excelência e talento. Valeu!
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