Ele dançava loucamente, solto na pista, chacoalhando o esqueleto como se não existisse outra a coisa a se fazer nesse mundo pós pandêmico. As luzes da ribalta o destacavam ainda mais por causa do distanciamento social, um bonecão do posto de gasolina, sem ossos no corpo, suando na cor verde marca texto. Os balanços dos anos oitenta, noventa, dois mil... A partir desse momento dava um tempinho e ia direto para o bar reabastecer com álcool a mente obscenamente vazia.
O começo era assim. Advogado linha sóbria vivia uma semana rotineira, almoçando no horário em restaurante por quilo, indo para casa dormir o mais cedo que pudesse, corrida de meia hora de manhã, banho, comida para o canário... Agora, havia dois dias, sexta-feira à noite e sábado que a loucura represada em seu ser despertava e o fazia relaxar, ser outra pessoa na pista de dança, mais um desconhecido, ia sozinho, voltava sozinho, e durante seis, sete horas bebia muito, dançava demais e esquecia.
A chegada era a sobriedade fora de lugar, de terno, sapatos importados, máscaras, luvas descartáveis, álcool em gel no bolso... Dirigia-se ao bar, chamava uma dose de uísque, amendoins e ficava ali calado, observando a movimentação, risos, barulhos, brindes, piadas. Chamava outra dose e uma garrafa de água mineral. Nesse momento retirava a máscara e afrouxava a gravata. Discretamente movia o corpo ao ritmo que embalava as pessoas naquele instante, mantendo dois metros de distância. De quando em quando eram banhados por uma dose de espuma de álcool para desinfetar, acompanhada de gritos e sorrisos.
Depois do primeiro banho desinfetante ele tomava uma tequila, pedia uma cerveja long neck e tirava o paletó. Dobrava as mangas da camisa, terminava a bebida, pedia a garrafa de uísque e caía dentro.
Começava com passos curtos, discretos, à beira da pista. Em seguida, na segunda música, erguia os braços e estalava os dedos. Dançando voltava ao bar, tomava duas doses cowboy, chamava uma caipirinha, outra long neck, enchia a boca de amendoins e retornava para a pista de dança carregando a cerveja.
Quarta, quinta dança. Revirava os olhos, sorria sem fazer contato visual com ninguém. Dispensava a garrafa vazia, matava a caipirinha, a água e voltava saltitante, agora invadindo a ribalta, o centro da pista. No meio de um semicírculo amplo de dançarinos de todo o tipo, soltava a franga de vez, saltando, girando, deslizando e gritando junto com os outros dançarinos quando incitados pelos Dj’s.
O padrão se seguia: caminhada da pista ao bar, do bar à pista; comer amendoins, beber, beber, beber. Hidratar-se com água e retorno ao centro da pista. Já era conhecido pelo despojamento, pela vestimenta sóbria que se desfazia durante a noite, por jamais conversar com outras pessoas.
A gravata amarrada na cabeça era o auge. Assim que o fazia voltava para outras doses de uísque, álcool gel nas mãos, no rosto, pescoço e braços e voltava em chamas para as últimas músicas. Quando começavam as canções da moda ele se afastava, pedia um daiquiri e uma vodca. Terminando-as chamava a conta, colocava a máscara e pegava o paletó. Pagava com cartão, dava uma nota de cinquenta ao bartender, pegava o paletó e se retirava com o dia amanhecendo. Dormiria vestido e acordaria no meio do sábado, tomava um banho, ia correr no parque. Almoçava no restaurante da esquina, voltava para um cochilo no sofá até dar a hora de voltar a gandaia.
Aos domingos assistia TV, lia um pouco, almoçava em casa via iFood, cochilava à tarde... Jantava pizza, passava a roupa que usaria no dia seguinte no trabalho, colocava o celular para despertar e deitava tranquilo. Mal falara dez frases. É o exemplo de homem culto pós pandemia, desconfiado, encoberto, feliz com a solidão.
Marcelo Gomes Melo
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