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Todos os versos. Alguns.





          “Gravíssima e instigante é a paixão que transcende a morte

           A tristeza que sobrevive à sorte, e a razão resiliente que

           Acorrenta os impulsos aos quais chamamos sonho”.





 
 
 
          “Importo-me com você vinte e quatro horas por dia
          E fico assim sempre que lhe ouço
          Ah! Céus de maio desabando sobre mim!
          As suas roupas somem. As minhas também.
          É louco atordoar a si mesmo
          A esmo...”



 
 
 
          “Pétreo.
          Contra um universo maleável
          Um coração se consome”.
 
 
 
 
 
          “Dela: as mangas rosa, os melões.
          Minha: a fome. A fúria.
          Ela”.
 
 
 
 
 
          “Ventos uivam o tempo todo
          Martirizando pelo estremecer do mundo
          Aos ouvidos surdos”.
 
 
 
 
 
          “Unos.
          Indivisíveis.
          Somos as hastes que governam o mundo
          Do amor”.
 

 
 
 
          “Espiritualize-me!
          Porque toda a matéria do seu corpo me pertence
          E todo o regozijo de sua alma é meu prazer.
          Átomo por átomo, rainha dos cálculos intrincados
Da física
Espiritualize-me!”
 

 
 
 
“Amores não diagnosticados são os mais comuns
Os outros são rotineiros.
O que turva o olhar e a mente
É incoerente, veemente
É o amor incandescente!”
 

 
 

“Não desista das qualidades ocultas
Que nem eu conheço.
Não insista com maldades
Invista no que vale o preço.
As complicações são infinitas”.
 
 
 
 
 
“Aceite-me assim
Ou rejeite-se
Até o fim”.
 
 
 
 
 
“Amorosas
As abelhas misturam
Néctar e dor”.
 
 
 
 
 

“Nuvens púrpura anunciam
Deuses de cenho franzido
Observando casais reticentes...”
 
 
 
 
 
“Ler o seu corpo
Nas entrelinhas
É decifrar o pecado
Nos grãos de areia da praia”.
 

 
 
 
“Esse é um mundo triste
Não seja ganancioso
Compartilhe suas dúvidas
Transforme  em conhecimento puro
As falsas certezas”.
 
 
 
 
 
“Roseiras cravadas
Pelo corpo cansado de prazer
Perfume escorre entre os dedos...”
 
 
 
 
 
“Sonhos deslizam nas cordas da guitarra
Emoções vagueiam como fantasmas
Arrastando correntes por dentro de vulcões
Tateando atrás da declaração perfeita”.
 
 
 
 
 
“Quando tudo o que dizem sobre nossa conduta amorosa
É incapaz de conter nossos movimentos felinos
Venha, vamos à praia passear entre as pedras.
Permita-me despi-la
Devolva o desejo reprimido por eles no brilho dos olhos
E em alto e bom som, proclame, sem piedade:
Orgasmem-se!”
 
 
 
 

                 Marcelo Gomes Melo



De natal a natal




           O fato é que morremos um pouco mais a cada dia sem nos darmos conta, cada um aferrado aos próprios conceitos, ou desprovidos de conceitos, comprando moda e vendendo hipocrisia, nos enganando enquanto o tempo passa e os acontecimentos nos distraem, como um ilusionista durante o truque.

           Durante o período de um ano quantas vezes paramos para cair na realidade, analisando o propósito do que fazemos a utilidade de nossas atitudes sem cairmos na mais profunda depressão?

          Sim, porque a doença do século XXI, a depressão acomete indiscriminadamente a qualquer pessoa, de qualquer idade ou credo, raça e status social. E muitos nem percebem ou desconfiam do mal que os incomoda, por causa da dificuldade de ser expresso em meras palavras. Trata-se de um mal silencioso.

          As pessoas enganam a si mesmas, ficam dormentes e perdem a capacidade de notar as catástrofes mundiais, regionais e até pessoais; isso as coloca à margem do próprio destino. Preferem ironizar, ignorar ou acreditar cegamente nos que detém o poder de influenciar a vida de cada um, criticando sem agir, se eximindo de culpa como se não participassem do mundo.

          O tempo, voraz, dissolve a matéria lenta e inexoravelmente, afetando a forma como os seres vivos interagem com o planeta. O planeta não morre. Os seres vivos, sim.

 
          Toda essa divagação serve apenas para sugerir que todos deveriam transpor a fase da hipocrisia, que faz com que nos manifestemos de acordo com o que a sociedade espera, nos moldes ditados pela mídia distribuidora de lixo, que devasta padrões morais e modificam o significado de ética, e passemos a agir de acordo com o coração; de verdade, não o fingimento padronizado e mentiroso.
          Que consigamos ir além das palavras repetidas de natal a natal, da falsa preocupação com os descamisados e mal arranjados quando somos todos desconsolados, frágeis de estrutura e pensamento. Poucos são os que realmente vão além da superficial preocupação e agem, sem saber que estão sendo observadas e sem segundas intenções, para se tornarem famosas e humildes profissionais. Presenciei um exemplo passando em frente a uma enorme igreja em que, na calçada jazia um farrapo humano, sujo, seminu e claramente alcoólatra, ignorado por todos os passantes, inclusive os que saíam da igreja. Entretanto, uma senhora que não vinha da igreja, alguém comum, parou e indagou ao homem como se sentia, se tinha família, qual era a razão para estar ali abandonado... Ela não tinha nada em mente a não ser ajudar. Estava se importando e não porque era fim de ano, mas porque era de sua natureza. Não precisava ser religiosa ou política ou nada, apenas uma pessoa tentando fazer algo para ajudar, nem que fosse conversar com a pessoa, dar-lhe atenção, fazê-la sentir-se humana.
          A conexão com Deus é mais simples do que se imagina e não requer intermediários, mas palavras vazias afastam; dissimuladores e dissimulados continuam no controle. O natural seria que as pessoas voltassem a confiar uma nas outras, que a ajuda fosse sempre recíproca, sem exigências, sem negociações, sem ilicitudes. Apenas o caminho comum. De natal a natal.
 
 
Marcelo Gomes Melo

Contos de natal

            Rabanada: Prazer e dor!
 
 

          Bicudo era o verdadeiro filhote do capeta. Feio que nem a fome, desfigurado como um quadro de Salvador Dali, sem a genialidade, é claro. Apesar de bom garoto, como todo adolescente tinha o estômago maior do que o cérebro, e estava sempre com fome. Nos dias normais ele assaltava a cozinha constantemente. Nos dias de feira comia uma dúzia de bananas de brincadeira, em segundos. Letícia era condescendente e permitia. A rabanada, não. Era véspera de natal, a rabanada era santa, não podia ser comida assim facilmente antes da hora.

          Bicudo ainda se lembrava do incidente do ano anterior, que ficara marcado para sempre em seu rosto. Assim que entrou na sala, Jorjão, seu tio, o chamou para confabular. Bicudo tinha uma vaga ideia do que se tratava e olhou significativamente para a cozinha, inspirando fundo, tragando todo o cheiro gostoso das suas narinas para o cérebro. Em seguida se lembrou da panela de óleo fervente escorrendo pela cara, a dor interminável, o cheiro de carne queimada se misturando ao de rabanada macia...

          Jorjão curvou o corpo para a frente, encostando a boca da orelha carcomida de Bicudo, e sussurrou lascivamente:

          - Bicudo, tem rabanada. – Bicudo olhou para a cozinha, os olhos esgazeados, mas não disse nada – Rabanada quentinha, cheia de leite condensado. É a hora, Bicudo. Vai deixar passar?

          - Só depois da meia noite, tio, você sabe. – Bicudo acaricia gentilmente a parte do rosto que estava queimada como plástico derretido.

          - Esse ano, não! – a voz de Jorjão estava endiabrada, encantada pelo cheiro e sabor de uma rabanada suculenta e irresistível. – Ela está de costas, chega por trás e...

          - Por trás, não, tio! – Bicudo corta, apavorado – Se ela me pega estou morto! – Mas não podia evitar salivar.
 
 
          - Bicudo, escute o seu tio... Tenho um plano pra você comer a rabanada agora! – Bicudo fica alerta imediatamente – Ela está na pia, lavando louça. Está cantando, pode ouvir? – Bicudo assente positivamente com a cabeça – Então... Você entra naturalmente, por trás da mesa e... Estica o braço lentamente... – Jorjão faz os movimentos, demonstrando como ele deveria fazer o gancho com o polegar e o indicador para abduzir a rabanada, levando-a à bocarra. – Ela nem vai perceber. Você sai pela porta da cozinha e vai comer lá atrás, na lavanderia! – esfrega as mãos, babando na barba como um anormal – Não perca essa chance, Bicudo! Elaborei esse plano, como seu tio do coração que sou, para que seja presenteado com a primeira rabanada! Antes do natal. Terá essa história imbatível para contar aos netos, sobrinhão Bicudo! – dá uns soquinhos amistosos nas costas do enlouquecido garoto. – Vai pra cima!
          Jorjão elaborara o plano durante um ano inteiro! Remoera a possibilidade de se aproveitar da fraqueza de Bicudo para comer a rabanada de Letícia. Usaria o próprio sobrinho em benefício próprio.
          O mais difícil seria convencer Bicudo, mas isso acontecera rápido. Agora era ficar atento para a manobra evasiva que o faria o gênio comedor de rabanadas digno do prêmio Nobel!
          Bicudo se dirige à cozinha, lentamente, acariciando as cicatrizes do rosto, lambendo os lábios, saboreando a rabanada mentalmente. Letícia cantarolava enquanto, de costas para a mesa, lavava alguma coisa na pia. A bandeja de rabanadas estava exposta. Bicudo parecia um ninja, pé de veludo, um à frente do outro, do jeito que vira nos filmes do FBI invadindo casas. A cada passo a rabanada ficava maior, mais gostosa e cheirosa.
          Jorjão pusera-se em pé e estava dois passos atrás de Bicudo, suando demais e tremendo. Não voltaria atrás, seja lá o que acontecesse. Sairia vencedor e com a rabanada entre os dentes de qualquer maneira!
          Bicudo se aproxima ainda mais, a voz de Letícia se transformando em um zumbido alto em seus ouvidos. Os olhos enevoados não saltavam da bandeja, os dedos se esticaram lentamente, cortando o ar. Os dedos em gancho tocaram a rabanada mais próxima, sentindo a consistência. Já ia puxar... Jorjão, dois passos atrás dele, viu que era o momento de entrar em ação! Cobrindo a boca com a mão, tossiu, chamando a atenção de Letícia.
 
          Em segundos o caos se instalou naquela cozinha natalina! Ele tossiu; Bicudo, com os dedos na rabanada o olhou, desesperado. Letícia, que estava com a machadinha cortando frango na pia, virou-se como um raio e flagrou Bicudo. Sua mão direita empunhando a machadinha desceu como um raio em direção à mesa e decepou os quatro dedos de Bicudo colados à rabanada.
          Bicudo urrou de dor e susto, enquanto o sangue jorrava sobre a mesa, batizando a rabanada que iria confiscar. O plano de Jorjão dera certo! Sacrificar o sobrinho para herdar uma rabanada na confusão. Nervoso e apavorado, cobriu a distância até Bicudo, enquanto Letícia se virava para pegar um pano de prato e enrolar na mão sem dedos do garoto. Pegou a rabanada enorme e dourada, manchada de sangue e enfiou toda na boca, empurrando com as duas mãos enquanto corria para a sala, fugindo da visão de Letícia, que agora, calmamente amarrava a mão de Bicudo tentando estancar o sangue. Bicudo chorava alto. Letícia afastava a bandeja de rabanadas para não estragar quando percebeu que faltava uma. Depositou a bandeja sobre a geladeira e voltou-se, furiosa, para o garoto sentado no chão, tentando recolher os dedos cortados.
          - Cadê, Bicudo? Cadê a rabanada?! Devolve! – ela puxou os cabelos dele e levantou sua cabeça, espetando os dedos em suas bochechas, obrigando-o a abrir a boca. Olhou lá dentro, disposta a enfiar uma tesoura no fundo de sua garganta para resgatar a rabanada. Surpresa descobriu que não havia nada lá. Nem vestígio de canela. Não daria tempo de comer uma rabanada de quatro quilos em segundos, com os dedos cortados.
          Foi aí que uma luzinha se acendeu no fundo de seu cérebro. Jorjão! O safado do Jorjão... Fechando as mãos como se fosse socar alguém, Letícia se dirige à sala, chamando Jorjão com voz estridente. Antes de entrar na sala ouviu um barulho.
          Quando chegou à sala, Jorjão estava estendido sobre o tapete. Tropeçara na mesinha de centro de vidro e a destruíra com seu peso. Ela se aproximou de um homem gigante esverdeado, olhos saltados e espumando pela boca. O pomo-de-adão estava enorme e roxo. Ela logo sacou a razão. Ele estava tentando engolir a rabanada de uma vez só. Engasgara! Impiedosamente Letícia tenta virá-lo à força; não para salvar sua vida do engasgamento, mas para recuperar a preciosa rabanada. Com força sobrenatural esmurra suas costas com força; tapas na nuca e na cabeça não adiantaram nada. Pensou um pouco e voltou à cozinha, onde Bicudo desmaiara, pegando uma faca enorme de cortar peixe, com a ponta afiada, retornando ao local em que Jorjão agonizava.
 
          Segurando-o pelos cabelos abriu um talho em sua garganta e escarafunchou com a ponta da faca até puxar a rabanada pra fora, quase inteira. Acompanhada de um dos dedos de Bicudo.
          - Ninguém come antes da meia noite! – a empregada psicopata falou, levando a rabanada de volta para a cozinha.
          O último pensamento de Jorjão foi sobre a ironia de haver debochado da pessoa que morrera engasgada com uma fatia de panetone. No dia seguinte estaria no obituário de natal por um motivo parecido.
Marcelo Gomes Melo
Contos de natal

        Rabanada: Tudo pelo prazer!




          A atmosfera natalina tomava toda a vila a cada fim de ano, como acontecia antigamente em todos os lugares, mas se perdeu com a modernidade, em que não há tempo para curtir as festas de fim de ano como se deveria, com reflexão e tranquilidade.

          Jorjão, um sujeito que fazia jus ao apelido, com 1,95m e 140 quilos, costumava repetir a sua rotina anual em toda a véspera, cruzando a sala em busca do jornal, e, no caminho ligando automaticamente a tevê, que apresentava os mesmos filmes de Papai Noel, neve e um monte de crianças chatas, falando de desgraças que se transformam em milagres e mais blá, blá, blá.

          Vestido com sua indefectível calça de veludo verde e camisa xadrez, já usando as meias novas que ganhara de presente da mãe, os pés enormes enfiados no velho chinelo de couro, Jorjão parecia um duende gigantesco de sobrancelhas grossas e barba negra. Abrindo o jornal e se encaminhando para a sua poltrona estratégica foi atingido de maneira contumaz pelo delicioso cheiro. Parou por alguns segundos e respirou fundo, fechando os olhos. Era o cheiro maravilhoso da rabanada da Letícia, que o deixava com as pernas bambas. Ela fisgava o corpo e a mente de qualquer um através de todos os sentidos, a começar pelo cheiro. Era a rabanada mais famosa da vila. E a razão pela qual Jorjão mantinha a poltrona estrategicamente posicionada era para ter a visão total da cozinha. Impregnado pelo odor hipnotizante ele sentou-se, imaginando a rabanada gostosa que se materializava quase fisicamente à sua frente.

          Letícia era uma morena alta, de cabelos negros amarrados e cobertos por um lenço vermelho para não atrapalhar na cozinha; costumava usar uma saia grossa e comprida e um avental quadriculado em vermelho e branco sobre a blusa branca de manga curta. Forte e enérgica, Letícia trabalhava na casa da família de Jorjão há anos, e era famosa como uma artista da cozinha e dona da rabanada mais deliciosa do planeta. No natal havia quem desse um braço para ter a oportunidade de saborear a rabanada, coisa que muito poucos conseguiam.

 
          Jorjão fingia ler o jornal, mas sua concentração estava inteira voltada para os movimentos de Letícia na cozinha, durante a feitura das  rabanadas desejadas até pelos deuses. Observar aquelas mãos habilidosas depositando ar rabanadas enormes, douradas, macias e quentinha em uma bandeja era excitante. A língua viscosa de Jorjão, involuntariamente percorria os lábios ressequidos; as pupilas se dilatavam e ele não conseguia pensar em mais nada, a não ser comer vorazmente a enorme rabanada de Letícia. Sabendo que era impossível comer ali, antes da hora, na cozinha, ele passa vigorosamente as mãos pela cabeça, espalhando os cabelos e procurando afastar os pensamentos libidinosos, tentando voltar  ao seu outro prazer; ler o obituário de fim de ano no jornal.
          O que fascinava a Jorjão nessa época eram as causas pouco ortodoxas pelas quais as pessoas morriam no fim de ano. E os eufemismos empregados pelo jornal para dizer que a pessoa morreu: “Deixou de existir Epifania Leite da Conceição, engasgada com uma fatia de panetone. Infelizmente, não houve sidra que ajudasse a liberar a passagem na garganta. A família agradece os pêsames e acredita que ela irá cear esta noite com o menino Jesus”. Jorjão resmunga impaciente; modo tolo de morrer! “João Moreira foi para o céu em circunstâncias misteriosas, quando transportava uma árvore de natal nos ombros para a sua casa, nessa madrugada. Rumores insinuam ter sido atropelado por renas”.
          Jorjão dá um suspiro e amassa o jornal. Letícia cantarolava músicas de natal de sua terra, no Pará. Ela viera ao mundo na *mesma cidade em que nascera Jesus, Jorjão pensa, orgulhoso, rindo consigo mesmo. Quem sabe se tocasse o órgão ficaria mais relaxado. Levanta-se com essa intenção e com isso fica com a imagem completa da rabanada de Letícia, suculenta, coberta com canela, molhadinha... Deve pesar uns quatro quilos na palma da mão! Ah, aquela rabanada coberta por leite condensado...
          O olhar de Letícia cruza com o dele e, surpreendido, Jorjão se encolhe e dá um sorrisinho sem graça, mas permanece imóvel, de olhar fixo na rabanada. Aquilo era uma entidade extraterrestre, não havia outra explicação, ele pensa, afogueado. Ela move a bandeja e algumas gotas de leite condensado com canela caem em câmera lenta em direção ao solo. A boca de Jorjão se escancara. Ele se imagina rastejando no chão da cozinha, lambendo, lambendo, subindo pelas pernas... Havia gotas nas pernas da mesa, também, até chegar na enorme rabanada, passando a língua pelas bordas, abocanhando o centro macio, degustando com prazer irrestrito. Jorjão quase teve um orgasmo! Foi a voz ríspida dela que o interrompeu, ordenando a ele que se afastasse da cozinha, que era pequena demais para os dois. Só aí percebeu que estava quase ajoelhado, com as mãos estendidas para as rabanadas. Recompondo-se do jeito que dava, pigarreou e dirigiu-se ao órgão para tocar noite feliz.
 
          Letícia decretara que ninguém comeria suas rabanadas antes da meia noite. E ela era poderosa. Na rua os garotos jogavam bola e sentiam igualmente o cheiro delicioso. Um dos moleques colocara a cabeça na janela da cozinha e levara um golpe de frigideira na testa. Saiu correndo pela rua, chorando com um galo e o perfume gostoso no cérebro. Logo Bicudo, o sobrinho de Jorjão, moleque malcriado e guloso, entraria em casa e insistiria, como sempre, implorando para comer uma rabanada. Como em todo ano, Jorjão se iludiu com a ideia de criar uma revolução para comer a rabanada à força. Nunca tinha coragem para algo assim.
          No ano anterior Bicudo tentara roubar uma rabanada e uma panela com óleo quente caíra sobre ele, queimando metade do rosto e da boca, formando uma espécie de bico que virara seu apelido, desde então. O resultado foi que passara natal e ano novo no hospital, privado de comer as gostosuras de Letícia. Ela falara em acidente, e Bicudo aparentemente perdera a memória. Só de vê-lo desfigurado Jorjão tremia. Mesmo assim, quando ouviu os passos do sobrinho se aproximando, decidiu. Tentaria comer a rabanada da Letícia antes da meia noite! Iria colocar um plano infalível em ação, tirado das forças militares norte-americanas: dividir para conquistar, procurar e destruir. Usaria Bicudo como isca. Estava disposto a tudo pelo prazer!
 
*Jesus não nasceu em Belém do Pará, Jorjão era inculto mesmo.
 
Continua...
 
Marcelo Gomes Melo

Isso é só o fim!
            Eu poderia dizer que o acontecido se deu por minha cabeça andar nas nuvens, e meus passos sequer tocarem o chão; por minha boca saborear o algodão doce cor-de-rosa que desmancha na língua dos apaixonados, sequiosos por maravilhas que os alimentem, espírito e carne.
          Claro, eu obviamente poderia alegar que meus olhos a buscavam incessantemente nos quatro cantos, o tempo todo, e no horizonte, ou além dele, até. E os olhos de quem procura para lá da fé, com a certeza que o pensamento fornece e a incerteza que o coração, um segundo depois o desmente, causa incertezas e contradições.
          Ninguém ousaria me contradizer caso eu afirmasse que trilhava o caminho das emoções naquele momento, completamente hipnotizado pelas promessas que enxergava perto o suficiente para jamais desistir.
          A verdade é que eu caminhava pela estrada desnivelada, esburacada e suja da cidade grande, os ombros encurvados, os pés chatos em “dez para as duas”, me arrastando, olhar cheio de sombras, vidrados como o olhar dos fanáticos, alijados da parte alegre da vida. Embriagado pela rotina, enfurnado em mim mesmo, com escoras em meus sonhos e a base firme como geleia, torcendo para não desmoronar tristemente e não mais retornar ao mundo dos vivos, à superfície dos que são movidos por objetivos valiosos.
          Como iriam me negar o benefício da dúvida caso eu contasse que a culpa pelo que houve foi do tempo, ensolarado demais, com céu de brigadeiro a atormentar os meus raios e trovões interiores? Quem iria retrucar se eu apontasse a providência divina me punindo por minhas culpas, chicoteando por todas as dúvidas, me tornando uma vítima, um mártir das circunstâncias?

           Fato é que a vida causa essas coisas sem explicação, no meio do dia, quando nada parece impedir a ninguém de realizar qualquer coisa. Naquele instante em que a maioria dos seres se sente invencível, a não ser os alquebrados que se recusam a fincar pé e resistir. Esses jamais seriam vítimas de incidentes como o meu, pois vivem tateando o caminho, como bois nos corredores para o abate, seguindo sempre na mesma direção, conformados. Quem estufa o peito e sorri confiante, dono da área, provavelmente será lembrado da própria insignificância quando menos espera.
          Eu poderia ter disfarçado e fingido fazer flexões, embora fosse parecer extremamente improvável, inviável e louco, naquele lugar. Mas esses vendedores de saúde química de hoje em dia estão sempre prontos a exibir o sorriso de plástico e os músculos de shake, por que não eu?
          Simples. Porque não tenho o perfil para essas tragicômicas atitudes, então refleti exatamente o que sentia no momento: um ser embasbacado e enfraquecido, derrotado pelo invisível, humilhado pelo absurdo, agradecido pelo apoio moral recebido, e depois entristecido como só os que viram o centro das atenções sem querer se sentem.
          A realidade mais fria e consequente foi que tropecei no nada, ali naquela esquina. Me vi destronado da dignidade do equilíbrio, me esborrachando em câmera lenta no cimento quente, rolando surpreso, dominado pela gravidade, joelhos, mãos e cotovelos feridos, tornozelo torcido, o orgulho ainda mais. Tentei recolher os documentos que escaparam da pasta que carregava antes que o vento os levasse, me transformando ainda mais em um ridículo personagem de desenho animado. Consegui, ajoelhado, velozmente fechando a pasta, olhando para todos os lados, checando as testemunhas do tombo descomunal. Daquele ângulo desconfortável não vi ninguém. Estava me erguendo, coração aos saltos, respirando fundo para me recompor do susto, quando, de trás de um poste surgiu, sabe-se lá como, um casal de testemunhas, perguntando, preocupados, se tudo estava bem comigo.
          Com um sorriso amarelo, sem encará-los, batendo a poeira da roupa, respondi que, 90% de vergonha, 10% de dor; fora isso, tudo certo.
          Eles se foram, sem sorrir. E eu chorando por dentro.

Marcelo Gomes Melo


Para ler e refletir

A lapa voluptuosa

  Era uma lapa de bife de uns cinco quilos, sem mentira nenhuma! Estava lá, exposto para quem quisesse ver e desejar, rosado, fresco, maci...

Expandindo o pensamento